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Mostrando postagens de janeiro, 2019

Verões felizes: rumo ao Sul! (Zidrou e Jordi Lafebre)

Primeiro volume da saga familiar "Verões felizes", esta breve HQ conta com diversos elementos que garantem a atenção do leitor: um enredo nostálgico (principalmente agora, que estamos vivendo surfando na onda dos anos 1980), um traço maravilhoso, uma trama que mistura humor e drama em dose suficiente. Para quem tem memórias de viagens de carro com a família, o volume tem de tudo para se tornar ainda mais querido. Com um casal e quatro filhos a bordo, é difícil que não criemos nenhuma identificação com ao menos um dos personagens. E, ao final da trama, saímos ainda mais apegados a essa inusitada família belga e ansiosos pelas próximas aventuras.

Nada (Carmen Laforet)

Anton Tchékhov, o meu russo (e talvez o escritor) favorito, compunha contos em que nada acontecia. Sua concepção do gênero, diametralmente oposta à de um Edgar Allan Poe, não apostava em conflito, clímax, resolução. O que predomina em sua escrita é a criação da atmosfera e não a atenção aos fatos concretos, palpáveis.  Como não lembrar da aura tchekhoviana, portanto, em um romance que traz o nada como título? Primeira obra de Carmen Laforet, o romance foi publicado quando a autora tinha apenas 23 anos - e, inusitadamente, traz um olhar muito maduro e desesperançado sobre a realidade. O enredo conta a história de Andrea, jovem interiorana que vai morar com parentes quase desconhecidos durante sua graduação em Barcelona. Assim como a protagonista, somos arrastados para o centro de uma família desestruturada, com relações passionais, imersa na pobreza resultante da Guerra Civil.  A obra não é um libelo contra a violência da ditadura franquista; no entanto, para bom leitor, basta um ol

Pequena grande vida (filme de 2017)

"Pequena grande vida" é quase uma distopia, que prevê um futuro no qual a solução para os problemas econômicos e ambientais é encontrada na sua literal redução. Com uma semelhança inegável com o clássico da Sessão da Tarde - "Querida, encolhi as crianças" - este filme trabalha com um tom de maior discussão científica e ética sobre o tema. O mote é interessante, de fato suscitando muitas problemáticas: e se pudéssemos reduzir nossa pegada ecológica no meio ambiente? E se produzíssemos menos lixo? Como se formam as sociedades humanas? Para garantir o conforto de uns, é necessária a exploração dos outros? - e por aí vai. Com a mão maior do que o braço, a obra tenta alcançar um número muito grande de debates, sem se deter com maior consistência em nenhum deles. Para piorar, ainda insere uma história de amor muito da inverossímil para tentar sustentar o interesse do espectador. Enfim, uma pena que uma ideia tão boa tenha caminhado com pernas curtas.

Escola de tradutores (Paulo Rónai)

Publicado no anos 1950, quando os estudos de tradução no Brasil e no mundo ainda lutavam pelo status de campo teórico, "Escola de tradutores" é um livro que revela a sensibilidade aguçada de Paulo Rónai, profissional de extrema competência e homem que viveu dividido entre terras e linguagens. Com acréscimos de artigos e revisões por quase 4 décadas, a obra é um bom espelho do apuro técnico e edição sistemática de seu autor. Ainda que algumas reflexões sejam bastante datadas, é muito interessante ver o quanto Rónai já antecipa fatos que só ocorreriam meio século depois - como o avanço da tradução automática, a profissionalização do tradutor, a necessidade cada vez maior de usar tradução em um mundo de fronteiras fluidas. Para além dessas questões, o que mais encanta no livro é a sensibilidade impressionante de seu autor. No texto mais tocante do conjunto, ele nos conta, por exemplo, como teve de traduzir (a mando da censura do governo) a carta em que seus parentes relatava

A borboleta amarela (Rubem Braga)

A crônica é o gênero da despretensão, que pode (ou não) alcançar profundos níveis de discussões literárias, filosóficas, sociais pela via da banalidade. Literatura do cotidiano, desliza pelo rés do chão (como já diria Antonio Candido) em que todos caminhamos. Pequenos amores, risíveis frivolidades, desilusões políticas: tudo pode ser motivo para a prosa dos jornais. Ter em sua própria definição a temporalidade de Cronos faz que o gênero corra o risco de se transformar em um conjunto de textos anacrônicos e desarticulados. Afinal, como se manter atual ao trazer a tona o cotidiano que corresponde a uma época e a um local específico? Rubem Braga tem a receita - mesmo ser prescritivo em momento algum. Ou talvez justamente aí esteja a fórmula: na falta de certezas irrefutáveis, lições de vida, morais generalizantes. O escritor vai tecendo pequenas provocações poéticas ao longo de seus textos, que encantam mais pelo caminho do que pela finalidade. Assim como na crônica que intitula esta

A tradução literária (Paulo Henriques Britto)

O campo teórico da tradução é bastante recente; no entanto, mesmo que tenha se consolidado apenas nos anos 1970, já conta com inúmeras linhas de raciocínio e vertentes ideológicas (muitas vezes desenvolvidas por quem não exerce o ofício). Este pequeno livro de Paulo Henriques Britto, poeta e tradutor de longa data, é uma excelente apresentação às diversas possibilidades de pensar a atuação do profissional da área. Britto parte de sua experiência para elaborar um texto afiado, que expõe os problemas e as contradições de muitas das teorias tradutórias. Assim, sua obra é não só uma introdução aos principais temas discutidos na área, mas também uma análise fortemente fundamentada deles. O humor do autor é delicioso, o que torna temas "cascudos" (como a contagem de sílabas métricas de versos jâmbicos) se tornarem deliciosos para o leitor. É uma obra feita com absoluta seriedade, mas com o tom de um bom professor - que sabe não só listar informações, mas também discuti-las,

Se você visse seu coração (filme de 2017)

Ao procurar informações sobre o filme "Museo", estrelado por Gael García Bernal em 2018, encontrei uma entrevista com o ator em que ele declarava ter lido Dostoiévski para auxiliar seu processo de interpretação do protagonista. Ainda que sejam diferentes filmes (e o que estou citando aqui foi, inclusive, produzido posteriormente), saber de uma das fontes de inspiração literária de Gael me fez ter uma nova percepção dos papéis que ele escolhe e dos caracteres que o cativam. Interpretado sob a perspectiva dostoievskiana, "Se você visse seu coração" é um filme que revela um personagem perturbado, imerso em um meio de pobreza e degradação para o qual não há saída (apenas ilusões de fuga). Filme autoral, é através do olhar da diretora que vamos tendo percepções da vida do protagonista, que pouco fala e quase nada entrega ao espectador. Encenada com sensibilidade, é uma obra que traz à tona questões familiares ao ator do papel principal: ainda que seja um filme francê

Poesia traduzida (Carlos Drummond de Andrade)

O volume de poesia traduzida por Carlos Drummond de Andrade, publicado pela extinta Cosac Naify, é um exemplo do trabalho criterioso que tanto nos faz sentir falta dessa editora. Não só há uma pesquisa intensa para recuperar os poemas traduzidos por Drummond em publicações esparsas e sob pseudônimos, como há notas contextualizadoras de cada um dos autores que passaram pelas mãos do itabirano no seu processo de encontrar correspondências poéticas entre as línguas. Considerando o quão recentes são os estudos de tradução (que começaram a se consolidar apenas na década de 1970), é admirável o instinto que o nosso poeta, tradutor amador de poesia, tinha para o trabalho. Ainda guiado pela linha teórica francesa, que admitia verdadeiras recriações literárias pelo tradutor, o trabalho de Drummond na área tem a qualidade de não ignorar a forma. Para cada um dos poemas traduzidos (seja do francês, do inglês, do espanhol ou de outras línguas, por meio de traduções indiretas), há uma escolha d

A escalada (filme de 2017)

A subida ao Everest é, talvez, o primeiro tema que vem à cabeça de um diretor que deseje filmar escaladas. No entanto, se por um lado o cinema já está farto de longas sobre o topo do mundo, por outro parece faltar uma abordagem mais leve do assunto. Afinal, se houvesse apenas mortes e tragédias, por que tantos ainda se arriscariam nessa empreitada? "A escalada" é inspirada no caso real de um homem negro, morador de uma periferia na França, que decide subir o Everest sem preparo prévio. Após conseguir patrocínio de forma quase inexplicável, viaja para o Nepal em busca de (literalmente) altas aventuras. Mesmo que a realidade não seja mascarada (há cenas de corpos na neve, de alpinistas mutilados), o tom da narrativa é tão leve que dá até vontade de fazer as malas. É uma daquelas obras encantadoras sobre viagem, que nos faz querer conhecer um pouco mais do mundo e do que ele tem a oferecer. Sem cair no humor fácil e em superficializações desnecessárias, é um filme na medida p

A estrela fria (José Almino)

Curto e potente, o livro "A estrela fria", de José Almino, é uma incursão em diversos temas poéticos. Ao final da obra, há uma espécie de glossário intertextual citando muitas das referências diretas utilizadas pelo escritor (que vão de um flanelinha carioca e Chuck Berry a Drummond, Ezra Pound, García Lorca...). Além dessas, há ainda os diálogos intertextuais não tão óbvios, que se oferecem quase como charadas ao leitor atento. Ademais do diálogo com múltiplas tradições, outra característica que permeia boa parte da obra são as referências à cultura do Nordeste, da qual o poeta é originário. Falando em origens, cumpre ressaltar que a conversa com a tradição atua como um resgate da infância do poeta - período interrompido não apenas pela chegada natural da adolescência, mas também pelo exílio do Brasil durante a ditadura militar. Como se vê pela explicação desordenada, é difícil resumir "A estrela fria", coleção muito ampla de temáticas e relativamente curta de

Museu (filme de 2018)

Inspirado em uma impressionante história real, "Museu" retrata ficcionalmente o roubo do Museu de Antropologia, na Cidade do México, em 1985. Além da magnitude do furto (foram roubadas peças de imensurável valor arqueológico), o que surpreende é a sua falta de propósito - afinal, com o destaque dado pela imprensa ao fato, os autores do crime não conseguiram repassar as peças adiante. Para interpretar o protagonista, Gael García recorreu à leitura de Dostoiévski, o que parece plenamente justificável no contexto da trama. Assim como Raskólnikov mata a velha usurária apenas para confirmar que não é um homem comum, o mentor do roubo parece cometer seu ato mais por uma obscena vaidade do que por usura. É preciso lembrar que os dois autores do crime eram de classe média e não tinham nenhum histórico policial anterior. Assim, ainda que não seja o crime perfeito, é uma primeira tentativa impressionante - que revelou, para além de problemas de segurança, a falta de cuidado com a pre

Todos já sabem (filme de 2018)

Um cenário deslumbrante na simplicidade, boa fotografia, um time de protagonistas de peso (interpretados por Penélope Cruz, Javier Bardem e Ricardo Darín) em conjunto para nos lembrarem que o poder de uma boa história vai muito além de bons recursos técnicos.  "Todos já sabem" é um filme que prende a atenção e só. A mescla de diferentes gêneros, que tende a enriquecer uma obra, neste longa é feita de maneira óbvia e frustrante. Assim, enquanto o início da narrativa se passa em um ambiente bucólico e em um dia de sol, todas as cenas de suspense ocorrem em ambientes lúgubres, na chuva e/ou na escuridão. Há uma tentativa de trazer à tona a hipocrisia das relações familiares, uma pretensão de ser um filme "em aberto" ao deixar pontos sem nó... mas são projetos bastante óbvios e malsucedidos. Com uma conjunção de bons recursos técnicos, consegue apenas entreter, mas não convencer.

As cartas que não chegaram (Mauricio Rosencof)

Nesses tempos em que vivemos - de um ódio tão fácil, falácias com estatuto de dogmas - a leitura de uma obra poderosa, como a de Rosencof, é um lembrete assustador do que acontece com aquele que perde sua humanidade em nome de crenças avassaladoras. Dois períodos históricos incontornáveis são retratados com maestria no livro - e, infelizmente, mais fundamentados na realidade do que na ficção. As primeiras cartas que nunca chegaram são as da família do pai de Rosencof, morta ou nos guetos da Polônia ou em campos de concentração. Com uma sensibilidade arrebatadora, o autor toma para si a tarefa de escrever missivas ao pai, revelando o destino trágico de seus parentes. A segunda e a terceira parte da obra ("A carta" e "Dias sem tempo") consistem no relato tardio do filho ao pai. O autor, Mauricio Rosencof, passou 11 anos, 6 meses e alguns dias na solitária durante a ditadura no Uruguai. Companheiro de Mujica, acompanhou seu trágico destino por mais de uma década. N

Roma (filme de 2018)

Os primeiros minutos de "Roma", em que assistimos à sequência de alguns dos créditos do filme, já dizem muito do que o espectador pode esperar dessa obra: é um longa que resgata características de um cinema mais antigo (tal como vemos na exposição antecipada dos nomes dos envolvidos na produção e na escolha pelo preto e branco), com uma incrível fotografia e sequências inusitadas de imagens (como o avião espelhado na poça de água do chão recém-lavado). Seguindo com a metáfora da cena da aeronave, é também um filme que trabalhará, com sensibilidade, contrastes tão profundos como o céu e o rés-do-chão . E, por fim, é uma obra muito mais contemplativa do que a que estamos acostumados a assistir atualmente. Dito isso, é preciso ressaltar que o longa talvez peque em alguns pontos. Apesar de ser uma obra relativamente longa (mais de 2 horas), não há um interesse genuíno em explicar o contexto da protagonista. Uma vez que o panorama exibido é o do México dos anos 1970, um aprofund

Uma noite de 12 anos (filme de 2018)

Assim como seus demais hermanos latinos, o Uruguai passou por uma longa e violenta ditadura. E, tal como sempre existiu e sempre existirá, houve resistência aos desmandos de um governo despótico e absolutamente controlado por interesses de outras nações. Seu principal núcleo de combate foi o movimento guerrilheiro Tupamaros, que operou por meio de assaltos a bancos (com distribuição de renda à população carente), sequestros de poderosos e inevitáveis assassinatos no confronto com as forças de repressão. José Mujica, Mauricio Rosencof e Eleuterio Fernández Huidobro foram militantes do movimento, famosos pelo poder de liderança e persuasão. Para além da prisão e da tortura, foram confinados em solitárias por um período que gira em cerca de 12 anos. Além da solidão extrema, eram proibidos de circular em um espaço maior que um 2 x 3 metros, de falar sozinhos, de se exercitarem, de verem o sol. São 3 homens que passaram mais de uma década na mais profunda noite - o que é retratado com bri

Infiltrado na Klan (filme de 2018)

Premissa incrível, narrativa envolvente, críticas sociais profundas e inusitadas, link com a atualidade terrível e necessário. São muitos os adjetivos possíveis para o excelente "Infiltrado na Klan" - e ele, por sua vez, não tem pretensão de alcançar o brilhantismo. É uma obra simples, direta, que vai direto na ferida. E dói. Como garante a epígrafe, "este filme se baseia em uma merda pra lá de real". Assim percebemos na primeira sequência de imagens do longa: o filme abre com a filmagem de um discurso raivoso, aparentemente exagerado, pregando o ódio e a intolerância. No entanto, quando chegamos ao final da obra e somos confrontados com cenas reais de violência racial, percebemos que não há hipérboles. Pelo contrário: é por meio do que aparece absurdo que somos apresentados à fúria da ideologia eugenista. Ainda que lindamente trabalhado, "Infiltrado na Klan" não se prende à construção de metáforas de difícil compreensão. É um filme quase "mastiga

Guardiões do Louvre (Jiro Taniguchi)

"Guardiões do Louvre" é um mangá que parte de uma premissa mais fantasiosa, a qual talvez não capture o leitor de primeira. No entanto, conforme avançamos as páginas, é difícil não se deixar envolver pelo estilo melancólico e poético de Jiro Taniguchi. Além de o modo de narrar a história já valer a pena por si só, a temática dessa obra é impactante para quem ama o mundo das artes. Acompanhamos o protagonista não só em uma experiência fantástica no interior do Louvre, mas também em contato com artistas como Corot, Van Gogh e Chu Asai. Uma das partes finais do livro, em que o protagonista vê como foram salvas as obras do Louvre durante a Segunda Guerra, é uma das mais interessantes do conjunto. Cheio de curiosidades históricas e artísticas, é um prato cheio para qualquer um que se interesse pelo assunto. Apesar de curto, consegue construir um protagonista complexo, maravilhoso guia pelos corredores abarrotados de gente, arte e história.