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Mostrando postagens de maio, 2021

Torto arado (Itamar Vieira Jr.)

Há muito tempo não se via um murmurinho tão grande em torno a um lançamento da literatura brasileira — o que alia grandes expectativas a um julgamento menos condescendente em relação ao livro. No meu caso, estava gostando demais do enredo, até me topar pela primeira vez com a palavra "didatismo" em uma crítica; depois dessa percepção alheia, foi difícil prosseguir sem me atentar às repetições, redundâncias, explicações que Itamar oferece a seu leitor. Algumas avaliações mais ferinas veem nesse didatismo uma tentativa de fazer um livro para ser consumido pela classe média branca, listando todo o beabá das misérias do povo negro e tornando-as assimiláveis para quem não poderá nunca compartilhar da mesma ancestralidade e vivências. O que mais me incomodou, em toda a polêmica, foi uma resposta mal-educada de Itamar a uma jornalista, na qual deixava implícito que ela não tinha entendido a potência de sua obra. O fato é que Torto arado cativa — não no sentido mais desumano da pala

Que é a literatura? (Jean-Paul Sartre)

Nunca tinha lido Sartre, e meu receio era me deparar com um texto filosófico difícil, muito intrincado — mas com o que realmente me topei foi com um senhorzinho rabugento e lacrador. Assim como a filosofia das frases cala-boca, que adoram uma boa generalização, é muito fácil ver a tese principal defendida neste livro deslizar pelo terreno das falácias... ao que Sartre prontamente responde: segundo ele, escolheu o que era mais urgente de ser debatido. E esse viés de decidir pelo imediatismo da sua própria proposição não passa muito longe da manha de um garoto mimado. Algumas alfinetadas ao longo da obra são realmente divertidas, e não de todo inválidas: quando diz que a burguesia quer decidir com que molho será devorada, que os surrealistas corrompem o mundo só para ir contra o papai rico... É hilário, mas um tanto raso (ainda que carregado de verdades). A grande solução proposta para o problema da literatura – democratizá-la sub-repticiamente pelos meios de comunicação, como roteiros d

Histórias do mundo para as crianças (Monteiro Lobato)

O sítio do picapau amarelo e o mundo do mágico de Oz foram as sagas que marcaram minha infância — muito mais que Harry Potter, que nunca estava disponível na Biblioteca Municipal e que só consegui terminar de ler na faculdade.  Quando vejo, hoje, a quantidade enorme de preconceitos bastante explícitos na obra de Lobato, mal posso me convencer de que todos eles foram tomados de maneira acrítica quando era criança. Longe de serem sutis, o racismo e a eugenia propagadas pelo escritor são ululantes. Na sua versão da História do mundo para as crianças , o que não falta é enviesamento histórico para defender teses colonialistas e conservadoras. A personagem que mais surpreende neste volume das aventuras do sítio é Narizinho, que a todo momento questiona Dona Benta sobre as injustiças e machismos que nos cercam.  Se tão pouco se salva, por que ainda leio Lobato? Porque quero resgatar o caminho que me formou como leitora, observando com mais cuidado todos os buracos no meio dessa estrada. Aind

Cinema, aspirina e urubus (filme de 2005)

Ainda que filmes de viagem me encantem, não costumo ser uma grande fã dos road movies - talvez porque a ideia de personagens em fuga de algo, sem propósito na vida, seja uma temática constantemente repetida pela estrada.  Não é o caso de Cinema, aspirina e urubus ; ainda que o longa seja permeado de fugas e deslocamentos, eles dialogam com uma realidade mais concreta, mostrando o total abandono de seus protagonistas em contextos tão cruéis como a Alemanha nazista, a guerra e a fome no sertão. O enredo traz ainda uma dos elementos que eu mais gosto (no cinema, na vida): o encontro de desconhecidos que não têm nada em comum e, ainda assim, compartilham um profundo diálogo e entendimento sobre as situações pelas quais já passaram.

Literatura para quê? (Antoine Compagnon)

Apesar de publicado em 2009, Literatura para quê ? me cheirou a teoria literária empoeirada, guardada em estante. A proposição inicial de Compagnon é o que mais me interessou em seu curto livro: para ele, cabe fazer uma distinção entre a vertente teórica, que tenta aplicar  ideias clássicas consagradas (retórica e poética) e a v ertente histórica, que observa circunstâncias da época e contexto social (história literária e filologia). Contudo, apesar da diferenciação, avisa que o mais prudente é andar pelo caminho do meio, evitando as tensões extremas no campo da literatura. Já o panorama histórico abordado por Compagnon, para justificar a suposta falta de interesse atual pela literatura, é bastante elitista. Além do mais, não considera a raiz da arte literária (que é oral) e nem as diferentes formas de mantê-la viva, fora do restrito campo de autores homens brancos e europeus aclamados. Além disso, na sua defesa entusiasmada da literatura, o autor ousa propor que ela talvez seja realme

O segredo do bosque velho (filme de 1993)

Inspirado em uma obra de Dino Buzzati, O segredo do bosque velho  só me faz lamentar que não haja uma tradução para a história original. Muito da beleza do filme parece ser um bom efeito plástico para o que veio composto, primordialmente encantador, na forma de palavras. Voltado para todas as idades, o filme é uma fábula sem efeitos especiais; cabe à imaginação do espectador atribuir as vozes aos personagens, sejam animais, plantas ou o vento Matteo. O cenário escolhido para a filmagem é de encher os olhos, fazendo que não seja preciso de muito para prender a atenção do público. Afinal, esta é uma obra basicamente sobre a natureza e suas forças ocultas: é com a ambientação que nos cativa e nos surpreende.

O segundo sexo (Simone de Beauvoir)

"Gosto da Simone romancista, mas não da teórica" é uma frase que já escutei de diferentes pessoas, ainda que nenhuma delas tenha ofertado opiniões embasadas sobre O segundo sexo . Talvez, das mais de 800 páginas da grande obra de Beauvoir, a famosa frase — "Não se nasce mulher; torna-se mulher" — seja o fio divisor entre entusiastas e rancorosos. E ambos, na maior parte dos casos, a repete sem conhecer o vasto contexto que a contém. Eu me encaixo no grupo dos que julgavam Simone sem conhecê-la — já sabia, antemão à leitura, que O segundo sexo  era uma obra defasada. E foi com esse espírito de descrença que comecei a lê-la. O princípio do livro, que trabalha questões biológicas com um olhar dos anos 1950, só corrobora os preconceitos que trazemos hoje em relação à sua escrita. E as críticas possíveis ao livro não param por aí: os exemplos burgueses e brancos para justificar posições ideológicas, a falta de contextualização no que se refere a distintas classes sociais

Quincas Borba (Machado de Assis)

Ao contrário dos outros dois romances mais conhecidos de Machado de Assis, Quincas Borba  é um livro que já conhecia, mas que ainda não tinha passado por nenhuma experiência de releitura. A impressão que guardava do meu primeiro contato com ele (por volta dos 13 anos), era de ser difícil. Agora, tanto tempo depois, me deparo com a surpresa de encontrar em Quincas  uma narrativa bem menos intrincada do que me recordava. Alguns aspectos "modernistas" da obra causam até certo humor — em alguns momentos, o Quincas parece um spin off do Brás Cubas . Nem sequer me lembrava que o falecido Brás dá até o ar de sua graça durante a narrativa, o que surpreende e diverte.  Há uma certa leveza no trato com os personagens, por mais que se trate de uma história com sua tragicidade. Assim, os aspectos digressivos da narração assumem um caráter mais despojado, como se Machado nem sequer precisasse mais se esconder na primeira pessoa de um personagem para tirar sarro, sem pena, de seu leitor oi