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Mostrando postagens de julho, 2018

Voragem (Junichiro Tanizaki)

Romance indicado por Eliane Brum para o clube de livros da Tag, "Voragem" impressiona por certo vanguardismo ao trabalhar temas tabu: a protagonista, Sonoko, é uma mulher insatisfeita no casamento que acaba se envolvendo em uma relação lésbica. Escrito na década de 1920, o livro vai além de trazer a homossexualidade à tona - aprofunda diversos e inexplorados vieses relativos ao erotismo. O tom exagerado do romance precisa, é claro, ser considerado dentro de seu contexto. Todas as hipérboles relacionadas ao sexo têm raízes mais profundas na cultura japonesa, e revelam muito do modo de ser do povo (inclusive da transição para um governo cada vez mais ocidentalista). Com uma narradora extremamente parcial, que conta sua vida em primeira pessoa, a trama dá espaço a diversas interpretações e exige um olhar mais desconfiado em relação ao modo como são expostos os fatos. No entanto, para quem não se permitir enganchar pelo discurso da protagonista (como é o meu caso), a obra dif

A resistência (Julián Fuks)

Resistência literária, política, metalinguística, psicológica, familiar - enquanto passeia pelas diversas possibilidades de uso do substantivo, a obra homônima vai tecendo uma narrativa extremamente poética, dessas de capturar o leitor para dentro de sua teia de palavras. O autor-narrador do livro (difícil precisar os limites em uma autoficção) tem como tema central sua relação com o irmão adotivo. Mesmo ao estabelecer esse mote, seus questionamentos sobre uma situação específica se ampliam, abrangendo a todos nós: afinal, quem é que não lida com uma falta primordial, com a ausência de respostas em relação à própria origem? O tom de poesia da história pode parecer inverossímil em certos momentos; no entanto, o próprio autor mostra suas possíveis falhas em diálogos metalinguísticos com os primeiros leitores do romance. É como se a própria obra trouxesse seu contra-argumento, além de apontar para uma falha conceitual que, ao fim e ao cabo, diz respeito às tênues margens entre a reali

Manual para melodrama (Ricardo Domeneck)

Irônico desde o título, o "Manual para melodrama" articula diversas possibilidades de lidar com uma rejeição amorosa, sempre em diálogo com textos que já formam parte de nossa tradição de "fossa". Apesar da proposta relativamente amena, sem implicações mais sérias, não se trata de uma obra desprovida de significações. Domeneck invoca desde Maísa ("Meu mundo caiu") até a figura mitológica de Medeia, criando um trabalho múltiplo e carregado de referências. Graças ao seu sarcasmo, é um livro bastante engraçado - que, contudo, não deixa de ser verossímil apesar de seus exageros estruturais.

Presságio (H. Hilst)

O primeiro livro de poemas publicado pela autora tem um título certeiro: pressagia ou antecipa algumas características que se tornariam marcantes na obra de Hilda. Ainda que não tenha um estilo muito consolidado, variando bastante na qualidade e temática dos poemas, alguns dos recursos eternizados pela poeta já começam a se configurar nessa produção inicial. A presença de um eu lírico feminino que canta o ser amado; a voz crítica e ácida em relação àqueles que não a compreendem; o uso de paradoxos e sinestesias, dentre outros, são elementos que ajudam a enriquecer o volume. Não se trata de um grande conjunto de versos, mas é uma primeira incursão bastante interessante no universo poético.

Sendero luminoso: história de uma guerra suja (Alfredo Villar, Luis Rossell, Jesús Cossio)

Não são poucos os episódios escabrosos na história de qualquer país latino-americano, ainda mais quando submetido ao bel-prazer de políticos corruptos orquestrados por interesses de outras nações e empresas. No entanto, o contexto em que se desenrolaram as ações do grupo Sendero Luminoso no Peru é particularmente chocante. Inicialmente donos de uma reivindicação absolutamente válida (a luta por escolas públicas gratuitas), aos poucos os integrantes da milícia foram tornando-se tão ou mais cruéis do que os opressores institucionalizados. A violência que grassou no país durante as guerrilhas atingiu níveis de barbárie incompreensíveis, dizimando cruamente os indígenas, pobres e camponeses. A graphic novel  dos peruanos Villar, Rossel e Cossio é de revirar o estômago. Não há receio em exibir cenas pavorosas de estupros e assassinatos - ou mesmo fotos do período. Contudo, parece não haver outro meio de contar essa história, marcada pela crueldade de diversos setores da sociedade. Afina

Garotas mortas (Selva Almada)

Em um trabalho que mescla o documental, o jornalístico e o literário, Selva Almada busca reconstituir a história de 3 feminicídios da década de 1980 na Argentina, todos sem solução. Em esse processo de resgate, traz também à tona um pouco do contexto do país (recém-saído da ditadura) e traça paralelos com o cenário atual, no qual a morte de mulheres em função do seu gênero ainda é escandalosamente presente. Não é um livro que me marcou tanto quanto "O vento que arrasa", principalmente em função da linguagem, que torna-se mais objetiva para condizer com os fatos investigados. Ainda sobre o estilo, aqui o objetivo da autora passa longe do de garantir uma leitura sem problemáticas. Assim, reproduz na obra todas as lacunas e faltas de respostas com que se deparou ao longo da pesquisa, espelhando no leitor a sua angústia. De certa forma quase pioneira (afinal, dificilmente o feminicídio é trabalhado a sério pela literatura - ou mesmo pelo jornalismo); de outra, apenas mais uma

Insones (Laura Erber)

Com versos brancos e afiados, Laura Erber é uma poeta brasileira contemporânea cujo estilo tem um quê de Ana Cristina César. Sempre envoltos pelo tom da coloquialidade, seus poemas por vezes se apresentam como enigmas para o leitor, mas sem criarem um caráter hermético ou intransponível. Pelo contrário: trata-se muito mais de um convite para desvendar possíveis significados, listar interpretações. Bastante curto, o livro conta com uma edição caprichada da 7Letras, que usa a própria diagramação como suporte para o conteúdo de alguns textos. 

O Sol na cabeça (Geovani Martins)

Seguindo a vertente de Férrez e Marcelino Freire, Geovani Martins é um novo autor que desponta no cenário literário nacional e que trabalha, sem papas na língua, todas as temáticas que envolvem a periferia. Seu livro de estreia, "O Sol na cabeça", é uma reunião de contos que passeiam por motivos diversos, sempre intrínsecos à vivência dos marginalizados: prostituição, drogas, porte de armas, violência, preconceito, trabalhos mal remunerados, péssimas condições de vida. Assim como toda coletânea de contos, é uma reunião um tanto desigual. Há histórias mais bem finalizadas que outras, mas, no conjunto, trata-se de uma boa obra. Uma certa aspereza na linguagem de Geovani, capaz de sintetizar situações de violência e abandono em poucas palavras, é um dos melhores traços do seu estilo. É um autor que vale sim a pena conhecer e acompanhar.

A ganha-pão (filme de 2017)

Produção europeia (Irlanda e Luxemburgo) e canadense sobre uma temática afegã, a obra é um conjunto cultural interessante, que mescla diversos olhares sobre uma única narrativa. Aliás, talvez a própria história central não seja marcada pela unicidade, já que resgata o método narrativo das "Mil e uma noites" e mescla diversas tramas para dar seguimento ao seu fluxo de acontecimentos. Em princípio, não se trata de uma obra para crianças, pois trabalha questões de guerra e violência. No entanto, ainda que fictícias, as personagens protagonistas da história são representações de milhões de meninos e meninas do mundo, que vivenciam diariamente situações de conflitos armados e privações diversas.  No conjunto, trata-se de um longa bem dosado, que sabe tratar temáticas complexas com delicadeza, sem cair na superficialização.

A tradutora (Cristóvão Tezza)

Meu primeiro romance de Tezza, talvez "A tradutora" não seja a melhor obra para principiar a leitura do autor catarinense. Os personagens do romance são criações anteriores do escritor, que já tinham habitado as páginas de outros livros antes de migrarem para a narrativa em questão. Desconhecidos para mim até então, não consegui sentir empatia pelos protagonistas. A narradora, Beatriz, é bastante superficial. Por ser narrado pela técnica do fluxo de consciência, temos acesso direto à mente da tradutora, cheia de hesitações, desconfianças e inquietudes. O aspecto mais interessante do livro é observar o processo de tradução da obra de um filósofo catalão criado pelo próprio Tezza; assim, acompanhamos não apenas como se constrói a transposição de sentidos, mas também como o estilo do autor traduzido se reflete na articulação dos pensamentos de Beatriz. Trata-se de uma obra bem articulada, com aspectos interessantes, mas que pouco envolve. Talvez conhecendo a genealogia dos

Canção de ninar (Leïla Slimani)

O arquétipo da babá que mata as crianças não é uma novidade na nossa cultura - veja-se "A mão que balança o berço", "Minha babá é uma vampira", "A babá" (série de terror), dentre outros exemplos que qualquer busca rápida pelo Google nos fornece. Assim, com um tema tão batido, o que diferencia o livro da autora franco-marroquina Leïla Slimani? Primeiramente, obra dificilmente poderia ser considerada um suspense, já que deixa bem claro seu desenlace logo ao primeiro parágrafo: "O bebê está morto. Bastaram alguns segundos. O médico assegurou que ele não tinha sofrido. Estenderam-no em uma capa cinza e fecharam o zíper sobre o corpo desarticulado que boiava em meio aos brinquedos. A menina, por sua vez, ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu como uma fera. Encontraram marcas de luta, pedaços de pele sob as unhas molinhas. Na ambulância que a transportava ao hospital ela estava agitada, tomada por convulsões. Com os olhos esbugalhados pare

Tempo de migrar para o norte (Tayeb Salih)

Culturas são intransponíveis - carregadas de histórias, linguagens e modos de viver únicos, revelam o quanto o diálogo com o outro é necessário, ainda que nunca seja completo. Por mais forte que seja a nossa empatia ( in + pathos ), o colocar-se no lugar do alheio é sempre uma tentativa frustrada, uma compreensão parcial. As vivências não se traduzem; em vez de reduzirmos culturas na busca por ideais sinônimos perfeitos, talvez nossa atitude diante do diverso deva ser sempre a de uma humilde tentativa de entendimento - que já sabemos, por antemão, ser impossível.  A narrativa de "Tempo de migrar para o norte" choca o leitor ocidental não apenas por sua forte alegoria de violência contra o colonizador branco, mas também por revelar o quão pouco compreendemos das vivências africanas (especialmente no que se refere ao Sudão).  As práticas culturais descritas na obra podem nos causar desde estranhamento até a mais profunda aversão, como no caso da circuncisão feminina.  No e

Jeremias: Pele (Rafael Calça e Jefferson Costa)

Primeiro (e durante algum tempo, único) personagem negro da Turma da Mônica, Jeremias se resignava a um papel secundário dentro da turma da Rua do Limoeiro. Protagonista pela primeira vez, graças à Graphic MSP, traz para discussão temas importantes concernentes à discriminação étnica. A graphic novel conta com um enredo interessante, um bom traço e sabe causar reflexão sem soar falsamente moralista. Nesse aspecto, talvez seja o volume mais representativo da coleção lançado até agora. Sem pesar demais a fala do protagonista - que, afinal, é uma criança -, ainda assim os autores puderam trazer, com delicadeza, o retrato de situações de descaso comuns em nosso cotidiano. Desnaturalizando o racismo, a história contribui fortemente para uma abordagem mais profunda da série de readaptações da Turma da Mônica.

Desayuno en Tiffany's (Truman Capote) + Bonequinha de luxo (filme de 1961)

Criação de Truman Capote, a personagem Holly Golightly, imortalizada no cinema por Audrey Hepburn, é uma das protagonistas mais carismáticas e divertidas da literatura moderna. Um dos elementos constitutivos de seu charme é a irreverência, até hoje marcante - afinal, muitas das atitudes de Holly ainda são consideradas tabu nos tempos que correm. Nem apenas de uma boa criação vive um autor, contudo; se a novela de Capote alcançou tanta popularidade, grande parte disso se deve ao estilo, absolutamente envolvente. Assim como a protagonista gera a curiosidade e quase a obsessão do narrador, nós também, como leitores, nos vemos envolvidos pela prosa agradável e estimulante da obra. O volume conta com outros três textos (cuja extensão varia entre o conto e a novela): Una casa de flores, Una guitarra de diamantes e Un recuerdo navideño. Ainda que também sejam bem articulados, talvez apenas o último se destaque tanto quanto a história que intitula a obra. Sobre o filme, é preciso ressalt