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Mostrando postagens de março, 2020

Os homens explicam tudo para mim (Rebecca Solnit)

Evidentemente feminista, o livro de Rebecca Solnit revela as origens de termos que se incorporaram ao nosso vocabulário, como o mansplaining. No entanto, é justamente nesse resgate de princípios que a autora demonstra uma concepção mais abrangente e histórica do silenciamento das mulheres, que não se adéqua a nenhuma etiqueta. A parte inicial da obra, mais voltada a questões da história do feminismo, não me marcou particularmente (até por trabalhar com assuntos de que já tenho algum domínio). É do meio para o final que o livro me intrigou bastante, ao traçar paralelos bastante ousados entre seu tema principal e assuntos tão amplos quanto a filosofia do caminhar. Com um início bastante didático, a pequena obra vai se aprofundando ao longo das páginas. Assim, o que ao princípio parece ser uma leitura leve é, de fato, um conteúdo bastante encorpado - que nega as aparências desde o título até a última página.

Dulce compañía (Laura Restrepo)

De Laura Restrepo, havia lido apenas "La multitud errante" - que me pareceu bem escrito, mas muito curto para desenvolver aspectos mais complexos. Um pouco mais encorpado, "Dulce compañía" não deixa de ser uma leitura que passa a ideia de brevidade; afinal, o estilo cativante da escrita de Laura nos faz querer devorar a obra. Com um começo mais instigante que o desenlace, o livro tem pontos e estilos narrativos bastante distintos ao longo da trama. As partes conduzidas pelo olhar do anjo - personagem em torno do qual orbitam as outras existências, inclusive a da narradora - são bastante tediosas em comparação com o ritmo mais acelerado da história.  O fato de não ter comprado os breves capítulos conduzidos pelo anjo talvez expliquem o porquê de não me convencer muito pelo final da história - na qual o místico se incumbe de cobrir os eventuais buracos da narrativa.

Jojo Rabbit (filme de 2019)

Meio-termo agradável entre "A vida é bela" e os filmes de Wes Anderson, "Jojo Rabbit" consegue fazer comédia e trabalhar a emotividade sem cair totalmente na superficialização dos discursos sobre a guerra. Um dos pontos mais interessantes de acompanhar ao longo da narrativa é ver o amigo imaginário de Jojo (uma versão fofinha de Adolf Hitler) ir se transformando aos poucos, fazendo exigências que se contrapõem à ética do protagonista. O olhar infantil que conduz a trama é uma boa justificativa narrativa para a abordagem menos complexa de alguns temas; além disso, causa um poderoso efeito de estranhamento ao ser contraposto à violência mais crua da guerra. Sorrateiramente, a frialdade e a desilusão permeiam a trama, mesmo que não aniquilem o tom mais leve da obra.  

Lua na jaula (Ledusha Spinardi)

Até aqui, este tem sido um ano de descobertas muito interessantes em poesia. Ledusha Spinardi é um exemplo desses encontros literários que me surpreenderam. A autora conta com uma longa (ainda que enxuta) produção na área; no seu currículo poético, constam parcerias com Cazuza e Lobão, além de assinar uma coluna sobre o gênero na Folha. Livro da maturidade, "Lua na jaula" sabe discorrer com excelência sobre temas como a velhice, a composição, o escrever, o isolamento. A capacidade de concisão da autora é impressionante, bem como sua habilidade em mesclar o hermetismo à informalidade. Com poemas curtos, é um livro que pode passar a impressão de ser uma obra a ser lida em uma sentada; no entanto, mesmo que seja devorado em um só trago, o conjunto de poemas reverbera por muito tempo.

Romeo and Juliet (William Shakespeare) + filme de 1996

Durante a adolescência, o encarte da trilha sonora original de "Romeu e Julieta" ficava pendurado nas paredes do meu quarto. Ao finalmente entrar em contato com a obra que lhe deu origem - e na sua língua original -, consigo entender mais claramente o impacto que a peça teve na minha formação como leitora. Por mais que haja traduções disponíveis da obra (e por mais que o meu inglês capenga tenha de recorrer a elas), a experiência de ler Shakespeare no original foi muito reveladora. As sutilezas de linguagem que tornaram o dramaturgo tão reconhecido ainda são muito potentes, mesmo registradas em uma linguagem que hoje nos é arcaica. Ao assistir ao filme, pude confirmar o que havia me encantando no fim dos anos 1990: muito mais do que a atualidade do filme de Baz Luhrman, o que me marcou profundamente foi a sonoridade dos versos e o contraste entre o discurso e o contexto. Assim, mesmo antes de o saber, Shakespeare me capturou por sua poesia.

Histórias da floresta encantada de gnomos e de gigantes (Tony Wolf)

Há uma tirinha de Liniers em que a personagem Henriqueta está parada, indecisa, em frente à sua estante. Ao ser perguntada sobre o porquê da dúvida na escolha da leitura, ela sabiamente responde que os livros lidos na infância têm o poder de nos marcar por toda a vida. A coleção da Floresta encantada foi um dos meus maiores encantos quando criança; retomá-la tanto tempo depois é também me reencontrar como leitora em formação. E consigo perceber hoje os elementos que tanto me atingiram nessa obra: além das ilustrações lindas, o texto é narrado de forma cativante. É uma pena que o livro não tenha resistido bem aos nossos valores de hoje. Foi com surpresa que vi os gnomos da minha infância caindo de bêbados ou inventando máquinas de tortura. E no entanto, ainda que tão politicamente incorreta, valeu o reencontro.

Bernice corta o cabelo (F. Scott Fitzgerald)

Publicado pela Lote 42, o livro foi editado para atender uma faixa etária mais jovem, mas nem por isso deixa de cativar os adultos. A trama é bastante simples, quase banal (como o demonstra o título), mas está repleta de significados mais profundos. Com protagonistas jovens adultas, a narrativa gira em torno de temas como autoestima, aceitação do diferente e afirmação da própria personalidade. No entanto, por mais que toque em temas sensíveis à formação dos adolescentes, não se torna uma história moralizante. Muito pelo contrário: com final aberto, a obra propõe diversas especulações sobre o destino das protagonistas, abalado permanentemente por um fato corriqueiro.

Assunto de família (filme de 2018)

As temáticas abordadas em "Assunto de família" podem parecer inéditas a quem pouco conheça cinema oriental - afinal, desconstroem a ideia do Japão como um país sem pobreza. No entanto, a pauta da miséria e do abandono têm se tornado mais recorrentes; para comprovar essa tese, basta assistir ao ganhador do Oscar de 2020. Outro filme que espelha os temas de "Assunto de família" é o também japonês "Ninguém pode saber" - no qual crianças sobrevivem escondidas em um apartamento, sem supervisão de nenhum adulto. Assim como nas obras com as quais dialoga, este é um filme de clima sombrio, em que pouco é explicado. Ainda que haja uma grande revelação ao final, ela não dá conta de responder a todas as questões que o enredo propõe. Muito fica subentendido e o desenrolar da história é bastante ambíguo. Nesse aspecto, a seleção de uma personagem criança para compor o conflito principal da narrativa é muito adequada - tal como ela, o espectador não conseguirá enten