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Mostrando postagens de novembro, 2022

O debate (Guel Arraes e Jorge Furtado)

Escrito no calor do momento, é um livro com prazo de validade; seu grande clímax é deixar o leitor na expectativa de saber quem ganhará as eleições de 2022 (Lula ou Bolsonaro). Com uma tentativa de reproduzir o conteúdo na forma, a peça teatral contempla o debate dos dois protagonistas: um casal de jornalistas recém-divorciado, ambos progressistas, que discutem com ardor sobre os rumos das transmissões eleitorais televisivas. Apesar de um ou outro argumento bem elaborado, o texto é a reprodução de falas já muito marcadas em todas as discussões de bar, acrescentando pouco ou nada de mais profundo ao panorama atual. De certa forma, ainda bem que o texto ficou datado: é preciso abrir caminhos a novos diálogos e enterrar de vez os fantasmas de um passado miliciano.

Apague a luz se for chorar (Fabiane Guimarães)

Conheci a autora pela história das formigas compradoras de livros ( https://www.folhape.com.br/cultura/formigas-invadem-kindle-e-compram-livros-sozinhas-relato-viraliza-nas/235248/ ).  Além de contar casos insólitos, Fabiane Guimarães usa suas redes sociais para a divulgação de seu romance de estreia. Depois de ler os primeiros parágrafos da obra, fiquei com uma vontade enorme de saber como terminava o enredo. Trata-se de uma história bastante cinematográfica, que facilmente poderia ser adaptada para as telas. Já do ponto de vista literário, o livro não sustenta tão bem o estilo cativante das páginas iniciais; alguns diálogos chegam a parecer reproduções de redações escolares, permeados de “ela disse”/”ele respondeu”. Não é uma leitura imperdível,mas tampouco é uma perda completa de tempo. O livro tem seus momentos (apesar de poucos).           

O morro dos ventos uivantes (Emily Brontë)

Conheci a obra por uma tradução de Rachel de Queiroz - achei um romancezinho interessante, mas sem entender o frisson que causava em tanta gente. Isso foi até perceber que o conservadorismo da escritora cearense se espraiou pelas charnecas inglesas. Publicado durante a era vitoriana, marcada pela austeridade moral, o grande feito do livro é sua transgressão. Uma das leituras possíveis é entender o Morro dos Ventos Uivantes como uma alegoria do inferno. Por que uma tradução se atreveria a tornar o diabo menos feio do que parece? Ao limar o grotesco da escrita original, a tradução de Rachel invalidou o projeto como um todo.  Dessa vez, lendo em inglês, tornou-se um dos meus livros preferidos. É um jogo infinito de espelhos distorcidos, com vidas que replicam as mesmas histórias ao longo de gerações. Penso agora que esses personagens com nomes e feições iguais talvez tenham sido a inspiração dos "Cem anos de solidão", que é outro de meus queridos. Bastaria diminuir alguns anos n

Meu pequenino (Germano Zullo / Albertine)

Livro espelhado, em que as narrativas de vida da mãe e do filho se confundem. Os laços que unem no útero expandem-se para a vida, criando necessidades iguais em quem já foi uma só carne. Delicado e potente, consegue aprofundar reflexões sobre infância e velhice – e sobre o que fazemos com o miolo da vida.

Tudo é rio (Carla Madeira)

Mais que um divisor de águas na nossa literatura contemporânea, é um divisor de opiniões: são muitos os elogios à obra, mas há quem prefira chamá-la de irresponsável. Eu fico boiando em meio ao caminho. O início do romance é o que menos me agradou, com frases de efeito forçadas e a ideia da prostituta que ama o que faz, como se não houvesse graves violências na sujeição imposta de corpos ao prazer alheio. Aos poucos, o livro melhora. Surgem personagens cativantes e a autora afina seu estilo, criando cenas de muita beleza. O problema é que, no fim das contas, trata-se de um enredo sobre perdoar o imperdoável, com passada de pano à misoginia mais brutal. 

Angola Janga (Marcelo D'Salete)

Rico documento sobre a história do Quilombo dos Palmares, o quadrinho justifica suas escolhas narrativas com base em documentos e fatos.  É uma versão bastante diferente da que conhecemos da época escolar. Alguns elementos romanceados suprem lacunas, para que os discursos sobre a resistência não venham apenas da fonte oficial - padres, governantes, bandeirantes. Apesar da relevância de uma obra desse calibre em nosso meio editorial, confesso que esperava um pouco mais. O traço e os diálogos nem sempre são bem acabados, tornando a leitura menos impactante do que deveria ser.

Incitación al nixocidio (Pablo Neruda)

Escrito pouco antes da morte de Neruda, este é um livro de protesto contra políticas genocidas e corruptas. Apesar da distância temporal e espacial, serve também como reflexo de nossos dias. Do ponto de vista literário, contudo, os poemas pouco convencem. O tom de manifesto aniquila o lirismo - não que uma poesia com ódio não seja possível, mas não é o que ocorre aqui.

Lágrimas de oro (Alejandro Jodorowsky)

Da produção multissemiótica do chileno Alejandro Jodorowsky, só conhecia o filme "Poesia sem fim" - uma obra que adorei, mas que me perturba. A faceta de cineasta surrealista também aparece nos cinco contos que compõem esta coletânea. Com uma síntese elaborada, as histórias quase se assemelham a parábolas, temperadas pelo absurdo e pelo onírico.

Eloísa e os bichos (Jairo Buitrago / Rafael Yockteng)

Temas: imigração, medo do desconhecido, dificuldade em adaptar-se. Do que mais gostei: é ótima a ideia dos insetos gigantes simbolizando nossos medos. E o lado B dessa história: como também podemos apavorar quem se sente diferente.

Rio, o cão preto (Suzy Lee)

T emas: abandono, responsabilidade, amizade, saudade, perda. Do que mais gostei: as ilustrações são lindas e dão o tom certo para uma história que trabalha a importância de conviver bem com nossos bichinhos.

Casa de passarinho (Odilon Moraes)

Temas: curiosidade, criação de hipóteses, natureza, pássaros. Do que mais gostei: é a soma de várias perguntas de crianças diante de uma casa de passarinhos, mas sem se preocupar com respostas.

Rosa (Odilon Moraes)

Temas: Guimarães Rosa, A terceira margem do rio, ser pai e ser filho. Do que mais gostei: é quase tão enigmático quanto uma terceira margem, quase tão calado quanto o pai que passa a vida na canoa. É pouquíssimo texto a emoldurar as ilustrações, mas com tantas possibilidades de leitura.

Sagatrissuinorana (João Luiz Guimarães / Nelson Cruz)

Temas: Guimarães Rosa, Os três porquinhos, desastres ambientais de Mariana e Brumadinho. Do que mais gostei: me emociono a cada vez que releio. Não é à toa que ganhou o Jabuti do ano passado - parece livrinho, mas é um tremendo livrão. Para mim, é a prova inegável de como o livro ilustrado pode ser literatura da mais alta qualidade.

Samira e os esqueletos (Kristin Lie Garrubo)

Temas: corpo humano (esqueleto e músculos), igualdade, humor e terrorzinho infantil. Do que mais gostei: é MUITO divertido. A cada releitura percebia um detalhe no texto ou nas ilustrações que me fazia rir ainda mais. Além disso, tem protagonismo negro mas não é um livro (só) sobre igualdade racial.

Lampião e Lancelote (Fernando Vilela)

Temas: cavaleiros, cangaceiros, narrativa de capa e espada, cordel, arte abstrata. Do que mais gostei: o todo. É tanta pesquisa para elaborar textos e ilustrações que só resta admirar o conjunto. Obra de arte da primeira à última página.

De passinho em passinho (Otávio Júnior)

Temas: dança, música, desigualdade social. Do que mais gostei: traz uma mensagem positiva, mas não é simplista; seus temas ricos são quase uma sequência didática, prontinha para ocupar as escolas.  

Da minha janela (Otávio Júnior)

Temas: vivência em comunidade, desigualdade social, amor aos estudos. Do que mais gostei: olhar pelas janelinhas de cada uma das casas e sentir a movimentação do dia a dia, a vida que pulsa na favela.

Com qual penteado eu vou? (Kiusam de Oliveira / Rodrigo Andrade)

Temas: nome, identidade, ancestralidade, sororidade. Do que mais gostei: ilustrações lindas e com muita representatividade.

Blue Nights (Joan Didion)

O final da vida de Joan Didion não foi fácil. Após perder o companheiro de 40 anos (luto narrado em "O ano do pensamento mágico"), a escritora teve de assistir à morte da filha, uma jovem saudável e vítima de descaso médico. Ao contrário da obra anterior, narrada um ano após a perda, aqui são cinco anos de distância entre a escrita e o enterro da única filha. Nesse período, a velhice chega com tudo: de certa maneira, é até um livro repetitivo, em que muitas situações são retomadas mais de uma vez - talvez espelhos de uma memória falha, talvez tentativas de fazer perdurar o passado. Tal como anuncia seu título, apresenta a tristeza de uma vida que se encerra, com sua solidão inescapável.

O ano do pensamento mágico (Joan Didion)

Há uma seleta e pequena coleção de livros que trabalham o luto sem descambar na autoajuda; suprir essa lacuna foi um dos motivos que levou Joan Didion a colocar em palavras a indizível morte do marido. Foram 40 anos de casados, em que os escritores conviviam quase 24 horas por dia. Por mais que não idealize sua relação, a escritora sabe quanta sorte teve ao poder contar, por tanto tempo, com uma companhia tão íntima. Colocar o tamanho dessa perda em uma obra é o resumo dessa longa convivência, em que o final foi posto em diferentes tempos para cada um dos seres. Tremendo livro.

A inquilina de Wildfell Hall (Anne Brontë)

Romance raiz, publicado em plena época vitoriana, o livro corresponde a muito do que se esperava do gênero na época: reviravoltas no enredo, uma história de amor no centro da narrativa, atenção aos valores religiosos e contextualização com um pano de fundo mais social. Apesar da previsibilidade, a caçula das irmãs Brontë toca em feridas que seguem abertas hoje: maridos opressores e alcoólatras, pretendentes incapazes de entender um “não”, mulheres crentes de que o relacionamento vai salvar um homem de seus hábitos nocivos. É um desfile de boys lixo, mas um ou outro personagem masculino é retratado de modo ambíguo; já no que diz respeito às personagens femininas, são santas ou bruxas. O que Anne defende no conteúdo infelizmente não reverbera na estrutura de seu livro: uma obra importante para a época, mas que ainda espelha os valores contra os quais a autora se propôs a lutar.   

Arqueología amorosa (Cristina Peri Rossi)

Nunca havia ouvido falar em Cristina Peri Rossi, mas foi uma das indicações de leituras mais enfáticas que tive de livreiras uruguaias com quem conversei. Saber que a autora foi proibida em seu país natal até 1985 já serviu como convite instigante a seus livros. Gostei especialmente dos poemas longos, em que a poeta consegue afiar ainda mais suas pontadas de sarcasmo e ironia. Os versos são iconoclastas, com defesa de todo tipo de amor e frequentes alusões a uma nova leitura religiosa, em que o centro espiritual é o corpo da amada.

Mata teu pai (Grace Passô)

A linguagem escolhida para esta peça de teatro é tão incisiva quanto seu título: não há meias-palavras ao clamar pelo fim do patriarcado e por uma existência mais justa para as mulheres. Quem conduz o texto é uma única atriz, já que a escolha da autora foi pelo monólogo: uma forma de expressão que exige o embate com o espectador e que sabe como criar incômodos necessários.

Incidente em Antares (Erico Verissimo)

Em uma conversa sobre o livro, a escritora Carol Bensimon definiu "Incidente em Antares" como o mundo invertido de "O tempo e o vento" - e não poderia caber acepção mais precisa. O romance é uma grande alegoria do Brasil, que começa retomando a história do país (desde os homens da caverna) e culmina com sete mortos levantando de seus caixões e fazendo um auê em praça pública. A escrita leve de Verissimo consegue amarrar esses elementos tão diversos entre si, criando uma leitura que é, acima de tudo, prazerosa. Publicado em plena ditadura, o livro não se abstém de questionar autoritarismos, encerrando-se com uma reivindicação potente pela liberdade.

Poemas da recordação e outros movimentos (Conceição Evaristo)

Sempre desconfio de prosadores que se enveredam pelos caminhos da poesia – mas Conceição Evaristo faz questão de mostrar que ocupa o lugar que quiser, com toda a potência de sua voz. O livro é dividido em seis partes, não nomeadas. Como temas centrais de cada uma delas, vemos a autora discorrer sobre a ancestralidade, o feminino, a esperança, o amor, a metalinguagem e a morte/o medo. Assim, a obra traça quase o percurso de uma vida, que começa com aqueles que vieram antes de nós e culmina na troca, no diálogo… na convivência que antecede o fim.  É incrível como Conceição tece seus textos, puxando na linha o fio de outros escritores: no verso do bordado, temos Drummond, os trovadores medievais, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa. Uma das mais potentes intertextualidades é o confronto de Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus, que relembrou muito minha impressão ao visitar exposições sobre ambas as escritoras no IMS.  A conversa de Clarice e Carolina começa

A falta que ela me faz (Fernando Sabino)

A crônica que intitula a obra começa assim: "Como bom patrão, resolvi, num momento de insensatez, dar um mês de férias à empregada". É isso: a posição de poder do homem branco de classe média muito bem marcada.  Outras pérolas que o livro traz: um personagem que esmurra um cachorro; uma personagem que deu o "azar" de não ser estuprada, nas entrelinhas do autor; o adultério masculino tratado como se fosse uma travessura; gordofobia; racismo; machismo. Sabino foi um dos escritores que mais li na juventude; o estilo das crônicas é construído com propriedade, convidando a conhecer mais. Retomar esses textos com minha leitura de mundo atual foi um processo doloroso, negando a leveza que o gênero deveria ter.

The Missing Piece / The Missing Piece Meets the Big O / The Giving Tree (Shel Silverstein)

Comecei a ler Shel Silverstein por “A árvore generosa”, que odiei. Na época, vi na história da árvore que entrega todo o seu ser para uma criança nada mais que a romantização de uma relação abusiva. Hoje, talvez enxergue um pouco mais de alegoria do que de idealização nessa história… mas ainda passa longe de ser um dos meus livros ilustrados preferidos. Já “A parte que falta” e “A parte que falta encontra o grande O” são obras que me marcaram mais, baixando a minha guarda em relação ao autor. Ambos entram naquela categoria de livros que servem para todos, por trazer mensagens universais. Dá para ler para uma criança, levar para uma sessão de terapia, entregar de presente a qualquer ente querido. E não é por ser abrangente que deixa de ser delicado e verdadeiro.

Rilke shake (Angélica Freitas)

Apesar de não contar com nenhuma subdivisão que agrupe os poemas apresentados, a primeira metade do livro me encantou bem mais que o restante dele. Nos textos que inauguram a obra, a verve irônica da poeta está afiadíssima, criando versos que são quase lacrações. Os temas que apareceriam depois, em “Um útero é do tamanho de um punho”, já começam a dar as caras por aqui. Do meio para o final, o livro conta com muitas referências textuais específicas – seja a algumas figuras históricas, como Gertrude Stein e Ezra Pound, seja às vivências próprias da poeta. Como a obra se propõe a ser uma grande batida de referências literárias, faz sentido – só não agrada a todos os paladares.

Um útero é do tamanho de um punho (Angélica Freitas)

O título já bastaria para listar esse livro de poemas entre os mais importantes da poesia contemporânea brasileira. Como um punho cerrado, os versos de Angélica Freitas atingem o leitor no peito, coração adentro. As três primeiras partes da publicação (“uma mulher limpa”; “mulher de”, “a mulher é uma construção”) brincam com os discursos violentos do que se espera do gênero. Os poemas também ironizam as expectativas em relação à própria poesia (na parte intitulada “3 poemas com o auxílio do google”, por exemplo). Banhados de ironia, os textos revelam um jeito de fazer poesia como quem acha graça das vociferações de ódio contra a mulher, expondo o ridículo da violência de gênero.

Contra viaje (Federico Berro)

A ideia do livro é nos fazer rir pelo reconhecimento, listando os perrengues pelos quais passa um viajante sul-americano na sua primeira incursão na Europa. Apesar de publicado nos anos 1970, a geografia que define nosso lugar no mundo não mudou tanto assim, o que faz a obra permanecer atual (apesar de um ou outro comentário infeliz sobre etnia e gênero). O problema maior do livro é seu ritmo: estruturado como dicionário, nem sempre traz verbetes que convençam. Além disso, por mais que um viajante mal-humorado possa ser engraçado, tem hora que cansa.

Barcelona passo a passo

O formato do livro, dividido por bairros e com mapas setorizados, ajuda bastante a planificar a viagem. Não tem nenhuma informação imperdível, mas organiza os passeios para turistar.

La gente feliz lee y toma café (Agnès Martin-Lugand)

Fui procurando um livro-conforto para me distrair da turbulência do avião, mas encontrei uma história menos fofa do que procurava. O protagonista masculino do romance é tão bronco que beira a violência (ou parte para ela, em alguns momentos). Como não consigo romantizar grosseria, a história pouco me convenceu. O título também poderia incluir “lee, fuma y toma café”, já que os personagens são fumantes inveterados - a ponto de o cigarro ser muito mais citado que o conforto da cafeína e boas dicas de literatura. Apesar de o final até surpreender um pouco (dada a previsibilidade do enredo), está longe de ser um livro para manter nas prateleiras da estante.

Marina (Carlos Ruiz Zafón)

Mais de uma amiga já havia me indicado a leitura de Carlos Ruiz Zafón, acrescentando que “Marina” seria uma boa porta de entrada para o mundo do autor. Contudo, foi apenas agora que encontrei o timing perfeito para a incursão na obra de quem fez de Barcelona uma grande personagem. Rever as ruas da capital da Catalunha pelo olhar de quem ali cresceu foi poder revisitá-la; além disso, Zafón também desce com seus protagonistas para o litoral, situando uma das principais cenas do romance na incrível Tossa de Mar. Contudo, para além de reativar minha nostalgia, o livro vale por si só: traz uma narrativa de mistério muito bem construída, que me lembrou um pouco dos melhores títulos da coleção Vaga-Lume. É uma história que é também ritual de passagem da adolescência, com tudo o que ela carrega: amor, primeiros contatos com a morte, solidão, aventura. E paixão pelos livros, claro.

Um amor incômodo (Elena Ferrante)

Livro de estreia da famosa (e incógnita) autora italiana, “Um amor incômodo” me surpreendeu. Já esperava a escrita viciante e uma narradora feminina perturbada, marcas tão próprias da sua obra – mas não contava ver esses elementos tão bem desenvolvidos logo na primeira publicação de Ferrante. Com foco na relação conflituosa de uma filha com sua mãe já falecida, o romance propõe uma reconstrução da figura materna pelo olhar enviesado da narradora em primeira pessoa. O efeito é sensacional, com a criação de uma personagem absolutamente enigmática e para sempre incompreendida. Há algo nessa elaboração que me lembrou da Capitu feita pelo olhar de Bentinho, à qual o leitor nunca terá acesso pleno. As descrições são outro espetáculo. Por mais que a escrita de Ferrante seja direta, conduzindo-nos ao núcleo da ação, há espaço para reflexões profundas e inquietantes. É como se a violência que permeia as relações familiares reverberasse nas palavras que tentam descrever esses elos confusos de am

Un été sans maman (Grégory Panaccione)

Este livro vem com uma instrução de uso: logo na primeira página, uma nota do autor adverte: para ler com calma. Afinal, trata-se aqui de uma história sobre férias inesquecíveis - e quem é que gosta de ver esse período, tão breve, prestes a acabar? Para mim, que repeti o conteúdo na forma (propondo-me esta leitura durante as minhas próprias férias), o livro foi um encontro com tudo o que vivi: o desconforto de estar em uma terra sem a segurança da língua-mãe, a descoberta de um mundo diferente, a intensidade da experiência concentrada em um pequeno período.  A obra traz também alguns conceitos oníricos que beiram o surrealismo: mas qual é, no fim das contas, a viagem que não resvala no lugar mais profundo e enigmático de nossas memórias, criando uma narrativa diferente a cada reencontro?

The center will not hold (filme de 2017)

Dirigido pelo sobrinho da escritora (o tio Nicky, de This is us), este é um documentário com um olhar bastante delicado para uma vida e a carreira prestes a se encerrarem. Há momentos de coincidências curiosas, já que Didion viveu também como roteirista de Hollywood: Harrison Ford, por exemplo, trabalhou como pedreiro na construção de sua casa. Mas o que pega mesmo é a veia trágica de uma mulher que perdeu marido e filha em um breve intervalo. Gostei de ter lido os livros referentes a esses episódios antes de ver o filme; é um bom caminho para entender a complexidade da obra de Joan.

Inquietos (filme de 2011)

Inquietos consegue ser um título-sinopse perfeito para esta recente obra do diretor Gus Van Sant. Novamente ele tematiza a juventude pelo seu viés trágico (só para lembrar: o diretor produziu Elefante, filme sobre o massacre da escola Columbine). Entretanto, aqui a dor dos adolescentes é outra, mais profunda: enquanto o protagonista Enoch tenta superar a perda dos pais, a personagem Annabel é obrigada a encarar a sua própria morte de perto, ao descobrir que o câncer que tem é fatal.   Depois de um encontro casual (que não poderia acontecer em outro lugar que não um velório), os dois jovens passam a compartilhar vivências e experimentam sensações ainda não testadas. Enquanto descobrem avidamente a juventude, sabem que a morte lhes espia de todos os cantos. O fim de Annabel se aproxima à medida que cresce o amor entre os dois protagonistas.   É um filme excelente, para assistir com a caixa de lenços de papel do lado. No entanto, não esperem por um sentimentalismo barato: o diretor tira s

Casablanca (1942)

Para entender a importância deste filme, não há como desvinculá-lo do seu contexto: lançado em 1942, é uma alegoria de um mundo em pedaços, em que nada ainda está definido. Não é à toa que, em uma das suas citações mais famosas, o personagem de Humphrey Bogart diz: “Esta é uma história ainda sem final”. Dá para ler a produção como uma propaganda pró-EUA, incentivando a entrada do país na Segunda Grande Guerra – mas a narrativa se abre a várias outras interpretações. Além disso, o fato de não haver heróis sem falhas torna a trama ainda mais forte, já que seria tão fácil cair em maniqueísmos em tempo de guerra. Os conflitos retratados (o indivíduo x o coletivo / o amor x a guerra / o velho x o novo / a ação x a isenção) tendem a reverberar por todas as épocas, fazendo que a obra permaneça como um clássico.

Tumbledown (filme de 2016)

Filminho estilo Sessão da Tarde, com algumas reflexões interessantes sobre escrita e luto. O que a trama tem de melhor é o que ela deixa em aberto, como o motivo da morte em torno da qual os protagonistas elaboram seus textos. A trilha sonora - com um papel muito importante no enredo - não deixa a desejar. No conjunto, o que fica aquém do esperado é o romance romântico, pouco verossímil e mal desenvolvido.

Meu ano em Nova York (2020)

Um filme que é um afago para a turma que gosta de: - leitura - escrita - mercado editorial - "O apanhador no campo de centeio" e outras obras de Salinger - literatura contemporânea A história narra como uma recém-graduada, aspirante a escritora, é contratada pela agência literária que detém os direitos de Salinger - autor que ela nunca leu. Somos testemunhas, assim, do processo de imersão na obra desse escritor venerado e recluso. Mesmo que seja quase um convite para lermos juntos, o filme funciona melhor para quem tem uma leitura mais recente dos livros de J. D. São várias as citações e jogos literários criados para cativar o público-alvo: nós, os bookworms.

A banda (filme de 2007)

Costumo gostar demais de enredos que narram um encontro marcante – e efêmero – entre desconhecidos; sob esse aspecto, “A banda” talvez seja um dos meus filmes preferidos. Eran Kolirin, diretor israelense, escolhe como protagonista de sua história um grupo de músicos egípcios. A fusão dessas nacionalidades nas telas, apenas 3 anos antes da eclosão da Primavera Árabe, é permeada de interpretações geopolíticas. A camada de leituras históricas é apenas uma das possibilidades de leitura da trama. São os conflitos humanos mais básicos que conduzem os personagens aqui: o embate entre uma geração conservadora e a irreverência da juventude, a liberdade e a opressão da mulher, a solidão e a convivência em família, o descaso pela arte e a necessidade que temos de compartilhar cultura. É uma daquelas raras obras que conseguem dar conta do todo em pouco mais de 1 hora de filme – e nem por isso o ritmo é acelerado. De certa forma, é até um filme lento… mas na medida certa. A atmosfera mais parada, q

A caça (filme de 2012)

Apesar de saber deste filme desde o lançamento, passei uma década sem coragem de vê-lo. Mais medonho que qualquer filme de terror, a trama parte da ideia de como uma mentira de criança pode arruinar uma vida para sempre. No enredo, um professor de creche é acusado de pedofilia por uma das menininhas da instituição, filha de seu melhor amigo. Uma das grandes sacadas do filme é deixar uma desconfiança de que algo realmente possa ter acontecido (seja com o professor ou com os outros adultos que cercam a criança). Apesar de todas as evidências em contrário, como desconfiar da narrativa de quem é tão inocente? Além das possibilidades de interpretação da história da menina, o que também fica em jogo é a atitude dos adultos. É como se, diante de um problema difícil, ninguém tivesse maturidade o suficiente para lidar com a situação; o que todos procuram são respostas fáceis e um culpado que seja punido – seja com a justiça penal, seja com as próprias mãos. Filmaço.

Três amigos na estrada (filme de 2011)

O título já antecipa uma referência clara do cinema bollywoodiano: o sucesso de bilheteria “Os três idiotas”, que havia sido lançado apenas dois anos antes. Não é incomum que as produções indianas façam referências a outras obras e reciclem estruturas já testadas anteriormente; contudo, nem sempre o resultado convence, como é o caso aqui. Uma ou outra frase mais bonitinha e a ideia de uma viagem pelos cenários deslumbrantes da Espanha são os pontos altos da narrativa. Fora isso, tentativas de piadas machistas são o fraco amálgama de um roteiro que pouco se sustenta sozinho.

Anjos e Demônios (filme de 2009)

Bom entretenimento, o enredo traz os elementos básicos de um filme de suspense e investigação: desvendar o mistério junto ao espectador, propor reviravoltas, sugerir um caso amoroso para apimentar a trama. O que mais me prendeu foi o passeio pelos corredores inacessíveis do Vaticano, bem como aos documentos secretos do Estado. O tom de teoria da conspiração, que acomete tantos desmiolados hoje, é o aspecto que mais irrita na obra – talvez por refletir tanto a nossa realidade atual.

Nope (filme de 2022)

Talvez a missão de todo filme de terror seja deixar o espectador desconfortável; contudo, no modelo clássico do gênero, à apreensão sucede-se o alívio de descobrir a fonte do mal e eliminá-la. Em “Nope”, o incômodo maior não vem das cenas de sangue e morte (que não são poucas), mas de não entender nada do que acontece ao redor dos personagens. Não se trata, por isso, de uma obra ruim. A prova de sua qualidade são as inúmeras hipóteses dos espectadores sobre as intenções do diretor, que surgem logo após o término da exibição. Tampouco se trata de um enredo extremamente difícil; algumas alegorias se repetem com frequência, até se tornarem mais claras para quem tenta desvendar os enigmas da produção. Contudo, há uma ondulação de diferentes ritmos ao apresentar a história que não ajuda a sustentar o interesse até o final da trama. Além disso, o fato de contar com um protagonista que literalmente baixa a cabeça diante do perigo ainda é uma questão que me incomoda (e talvez devesse mesmo inc

Clara Sola (filme de 2021)

Longa de estreia de Nathalie Álvarez Mesén, diretora costa-riquenha, “Clara Sola” reverbera alguns aspectos do filme guatemalteco “Ixcanul” (lançado sete anos antes). Não é difícil imaginar por que esses países, com pequenos territórios e uma extensa história em comum, tenham tanto para compartilhar. São as narrativas de povos silenciados por séculos – e ainda pouco ouvidas. Em ambas as produções, a protagonista tem uma relação fortíssima com a natureza, a ponto de se envolver fisicamente com os elementos da floresta. São duas mulheres reclusas em comunidades afastadas, nas quais vigora a tradição familiar e a religião do colonizador. No entanto, apesar das aproximações possíveis, são narrativas com uma trama própria a deslindar. Em “Clara Sola”, o que domina é ambivalência entre normalidade e loucura, profano e sacro, catolicismo e Pachamama, castidade e depravação. Saímos do filme sem ter respostas que desamarrem as ambiguidades; assim, navegamos entre os duplos de uma personagem que

Quatro casamentos e um funeral (filme de 1994)

Não costumo gostar dos filmes de Hugh Grant, mas tinha a vaga lembrança de que havia assistido a essa obra há muito tempo – e curtido. Percebi, logo no começo, que me baseei em uma memória falsa; no geral, é um enredo bem chatinho, que mal e mal entretém.  Se participar de uma cerimônia de casamento sempre dá um pouquinho de tédio, multiplique por 4 (acrescentando um funeral, como anuncia o título): o resultado é uma comédia romântica fraca, em que quase nada dá liga. 

Harry & Sally (filme de 1989)

O filme traz meu aspecto preferido em histórias românticas (bem como nas relações que as inspiram): é tudo uma grande e interminável conversa, que segue com o passar dos dias. Ao assistir ao longo diálogo dos protagonistas, não pude evitar a associação com “Antes do nascer do sol”, assim como com o restante da trilogia de Richard Linklater. Por fundamentar a relação amorosa na amizade, não há propriamente um clímax na trama – ainda que passemos boa parte do tempo torcendo pela união do casal que intitula a obra. O mais importante é aquilo que antecede o encontro físico: o afeto, a confiança, a troca. Depois disso, o restante é adendo.

Gladiador (filme de 2000)

Filmes de ação costumam me perder logo nas primeiras cenas de luta. Em “Gladiador”, apesar da temática agressiva, há elementos que fazem o restante valer a pena. Priorizando o contexto de desenvolvimento da filosofia romana no qual se insere, o enredo é permeado de reflexões sobre o que é o poder, a república, a vontade do povo, o bem e o mal. Se não fosse pela escolha acertada dos atores, talvez a trama reverberasse em um maniqueísmo fácil. Contudo, a figura calma e concentrada de Russell Crowe nega o estereótipo do guerreiro valente; de forma parecida, Joaquin Phoenix representa um vilão com baixa autoestima e vacilante nas decisões que toma, por mais violentas que sejam. Quase um quarto de século depois de sua estreia, é uma obra que envelheceu bem, com questionamentos que seguem atemporais.