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Mostrando postagens de julho, 2017

Outros jeitos de usar a boca (Rupi Kaur)

Poesia pode ser best-seller ? O livro da poeta canadense (de família indiana) Rupi Kaur demonstra que sim - afinal, foram mais de 40 semanas na lista dos mais vendidos, e isso apenas no EUA. No entanto, dado o inusitado da situação, fica a pergunta: o que fez este conjunto de poemas tão diferente de seus pares, a ponto de atingir tal popularidade? Em uma análise breve, poderíamos considerar a globalidade do discurso de Kaur: entre indiana e canadense, Ocidente e Oriente, elitizada e popular. Com braços de polvo, que englobam diferentes culturas, discursos, apelos, sua poesia dá voz a muitos - ao contrário, talvez, da poesia tradicional, centrada na voz de um eu lírico que nem sempre compartilha seu discurso com o leitor (muitas vezes, apenas o quer como espectador). Outro ponto que torna os poemas mais acessíveis é a linguagem, que carrega a síntese e a intensidade do gênero poesia mesclados a algo novo. Não se trata apenas do coloquialismo; é um despojamento pleno, que, muitas vez

Okja (filme de 2017)

Assim como as imagens chocantes nas cartelas de cigarro, lentamente, deixam de agredir o consumidor - simplesmente incorporam-se à paisagem circundante -, o discurso de quem defende a causa animal também, gradualmente, é embotado pela indústria da carne, do leite, do uso animal. Com o tempo, o vídeo mais cruel de abatedouro pouco mais faz do que causar apatia no seu espectador (caso ele esteja, cultural e visceralmente, mais ligado ao que consome do que ao ambiente que prejudica). O que "Okja" faz, neste contexto, é uma jogada de mestre - em vez de insistir nas cenas de animais sendo trucidados por máquinas, cria um bicho desconhecido, fruto de animação de computador. E é este animal, uma soma de códigos e configurações virtuais, que consegue resgatar nossa consciência de consumo carnista - de uma forma mais intensa do que os seres reais circulando pela indústria alimentícia ao redor do mundo. Com uma linguagem infantojuvenil, uma protagonista interpretada por uma menina

O Cortiço (Aluísio Azevedo)

Para o bem ou para o mal, os livros que mais reli na vida são os das listas obrigatórias da Fuvest e da Unicamp - seja como vestibulanda, seja para as aulas que preparo sobre essas obras. E, nesse aspecto, que delícia é ter reencontros (dotada de um pouco mais de maturidade) com grandes clássicos da literatura e ir desvendado, aos poucos, significados que passaram tão despercebidos nas primeiras e juvenis leituras desses enredos. "O Cortiço" talvez seja, dentre os repetecos clássicos das leituras obrigatórias, o romance que mais cresceu para mim. De um livro chocante por suas cenas de sexo, durante meus primeiros anos de adolescência, à leitura sem emoções para o vestibular, tornou-se, recentemente, uma obra plena em delicadeza e em humor - muito além da crueza analítica e científica do Naturalismo. Alguns personagens, inicialmente despercebidos, se cravaram fundo na memória: Albino, com sua delicadeza questionadora dos limites dos gêneros sexuais em pleno século XIX; Ago

Feios, sujos e malvados (filme de 1976)

A comédia é a tragédia vista um pouco depois - com o filtro do tempo, quase todas nossas misérias passam pelo crivo do humor, da ironia,  ou mesmo do sarcasmo. É uma constante em nossas vidas: sejam nas piadas contadas no funeral ou no amor passado que vira motivo de zombaria e gerador de memes. E quando juntamos o tempo da tragédia e da comédia, o que acontece? Ettore Scola brinca com essa ideia ao dirigir "Feios, Sujos e Malvados". Todos os elementos do filme são deprimentes, degradantes e absolutamente cômicos. Uma reunião difícil, mas que foi orquestrada com maestria. No enredo, um velhinho pobre vive em um barraco com seus dez filhos, mulher e muitos agregados. Após receber um pequeno montante de indenização do serviço, vive com medo de ser assaltado pelos próprios parentes e dorme com a espingarda na mão e o dinheiro escondido. Já vemos desde o princípio, portanto, que o conceito de família é destruído pelo diretor - contudo, ainda que estejamos frente a protagonist

Demônios em quadrinhos (Aluísio Azevedo por Guazelli)

Meu interesse renovado por Aluísio Azevedo é bastante recente - afinal, é um daqueles autores que a escola força goela abaixo, sem procurar despertar nenhum gosto real por sua escrita. No entanto, superados os traumas, é um escritor que vem crescendo aos meus olhos (cada leitura nova de "O cortiço" vem sendo uma agradável redescoberta). Para quem gostaria de dar uma chance ao naturalista, esta é uma boa porta de entrada. Mantendo o texto original, mas com evidentes cortes (para adaptá-los aos quadrinhos), o artista Guazelli realiza um bom trabalho, atribuindo visualidade a um dos contos mais perturbadores de Azevedo. Em uma época em que "The Walking Dead" tem tantos fãs, este conto tem todos os elementos para cativar os adolescentes: mistério, acontecimentos sobrenaturais, zumbis, um tom de humor ácido e debochado e o núcleo romântico. É uma história que prende a atenção, muito bem escrita, e que não receia colocar mortos-vivos como protagonistas. Um livro delic

Dois irmãos (série de 2017)

Da minha experiência da leitura de "Dois irmãos", saí com a impressão de ter me confrontado com uma obra muito visual, quase tátil - tanto é assim que só através dos quadrinhos (adaptados pelos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá) consegui visualizar e incorporar alguns elementos da narrativa. Com uma história que é para ser vista, um cenário e contexto "exóticos" (os imigrantes libaneses na Amazônia em meados do século XX) e a direção artística de Luiz Fernando Carvalho (que também trouxe Machado para as telas no excelente "Capitu"), a série teve todo o potencial para dar certo. Até decidirem que os protagonistas seriam interpretados por Cauã Reymond. Os primeiros quatro episódios, em que os gêmeos são ficcionalizados por caras pouco conhecidas, são excepcionalmente melhores do que os demais. Com a entrada de Cauã e de Eliane Giardini, a adaptação literária vira uma novelinha das nove, com muita gritaria, exageros, atuações fracas e uma leitura bem crua do t

Para educar crianças feministas - um manifesto (Chimamanda Ngozi Adichie)

Com um discurso potente, uma argumentação estruturada, Chimamanda consegue defender o feminismo de um modo delicado - porém esmagador. E essas duas facetas, tão opostas, são absolutamente necessárias: a delicadeza da sororidade e o peso de quem não se cala para não ser considerada dura ou pouco feminina. Chimamanda é a mulher que sabe dosar essas vozes, e atingir parcelas diferentes e por vezes incomunicáveis da sociedade. Publicado como manifesto, o livro é, em verdade, uma carta que a autora escreveu para responder à pergunta de uma amiga: como educar minha filha para ser feminista? Depois de algum tempo (e, inclusive, após Chimamanda se tornar mãe de uma menina), o texto foi revisto e retomado, incorporando novas verdades. Livro curto, didático, necessário. Afinal, se queremos falar de justiça, paz, amor, temos de antes discutir a igualdade. Não há bondade onde as oportunidades são diferentes. Ser feminista, assim, não é uma opção - é o único caminho para transformar o mundo em

Laerte-se (filme de 2017)

O quanto (des)conhecemos sobre as questões de gênero e sexualidade? Na série Merlí (2. temporada), o protagonista, um professor de Filosofia descolado, tenta ser extremamente simpático quando a escola recebe uma outra docente, travesti. No entanto, conforme a história avança, o novo membro do grupo escolar faz que Merlí perceba que o seu entusiasmo é tão preconceituoso e cheio de tabus quanto o olhar malicioso dos demais colegas. É disso que falamos quando falamos de gêneros: enquanto determinadas questões não forem naturalizadas, incorporadas, tratadas com o mesmo olhar que temos sobre a sexualidade-padrão, será necessário preencher-se com informações. E, claro, com empatia. Laerte é uma figura já muito conhecida, tanto entre a comunidade LGBT como na grande mídia. E, com a sua exposição nesses meios, tornou-se também uma personalidade enigmática para muitos, especialmente aqueles que pouco acompanham as discussões sobre gênero. Além disso, é alguém icônico, por ter optado p

Matéria de poesia (Manoel de Barros)

Com apenas 3 poemas (ou um poema longo dividido em três partes), Matéria de Poesia é uma obra que consegue sintetizar muito da poética deste autor mato-grossense. Como já o traz o próprio título, é um livro de metalinguagens, invenções, ficcionalizações - é um ser e estar neste espaço mito-poético, entre pedaços de lixo, de Pantanal e de poema com cara de prosa. Poeta de mão cheia, Manoel consegue produzir um verdadeiro tratado sobre os motivos de sua poesia sem ser pedante, artificial ou presunçoso. Afinal, a marca central de sua escrita é a simplicidade, a valorização do pequeno, do que é descartado, ignorado. Nesse contexto, nada mais justo que um livrinho pequeno, de poucas páginas - mas muito poderoso. A primeira parte do poema, "Matéria de poesia", qualifica os materiais e sentimentos utilizados na construção da poética. A segunda, "Com os loucos de água e estandarte", passeia por algumas imagens mais surrealistas, oníricas, mais míticas do que herméticas.

Juana Inés (série mexicana - 2016)

Juana Inés foi uma das figuras literárias que mais me encantou durante a faculdade, e não tanto por seus escritos (que ainda conheço pouco) quanto por sua biografia revolucionária. Nascida latino-americana no século XVII, conseguiu infringir tabus e convenções para encontrar sempre meios de continuar lendo, escrevendo e estudando. Desde assistir aulas às escondidas, quando era adolescente, até se internar em um convento para poder dedicar-se à leitura, as atitudes de Juana Inés de la Cruz refletem um espírito irreverente e cheio de energia. A série, produzida por seus conterrâneos, por vezes peca por um excesso de dramaticidade (tão típico das novelas da Televisa, por exemplo). No entanto, considerado o período histórico (dos primeiros flertes com o barroco), por vezes a hipérbole se adequa bem ao discurso social da época. Um dos pontos mais interessantes da produção é o retrato dos cenários - as igrejas suntuosas, o excesso de ouro, as vestimentas incompatíveis com o clima do país -

Prosas escolhidas e Poema sem herói (Anna Akhmátova)

Durante muito tempo, a literatura russa só chegava ao Brasil por meio de traduções indiretas, muitas vezes mal-cuidadas, quando não profundamente alteradas pela ideologia vigente de então - segundo a qual o trabalho de quem traduz é também o de deixar marcas no texto, editando, acrescentando e fazendo cortes sem ter a preocupação de informar o leitor dessas alterações no original. Desde que as traduções diretas do russo começaram a pipocar na língua portuguesa, é motivo de comemoração cada novo autor e obra que são trazidos, sem escalas, das terras frias da mãe Rússia. Contudo, nem sempre isso é atestado de qualidade - como, infelizmente, o atesta esse livro de Anna Akhmátova, poeta tão pouco conhecida por nós. Ainda que seja uma edição farta de notas de rodapé, elas não são suficientes para guiar o leitor brasileiro na escrita de uma autora considerada, até por seus conterrâneos, por vezes hermética. Talvez houvesse sido uma solução mais acertada trabalhar com um número menor de t

Moonlight (filme de 2016)

Com um dos Oscars mais polêmicos da história da premiação, Moonlight é um filme que desperta naturalmente a curiosidade do espectador. Para o cinema estadunidense, é também uma obra de abordagem/temática diferenciada; ao contrário da grande maioria das produções hollywoodianas, esta se centra em um núcleo periférico dentro do sistema econômico do Tio Sam.  Talvez, contudo, o choque seja maior para o público estadunidense; como brasileira e espectadora de vários filmes que retratam a pobreza de um ponto de vista quase determinista, o roteiro não foi uma novidade. De certa forma, é bem parecido com o de vários longas destas terras tupiniquins. Em uma época de tanta discussão sobre a representatividade, Moonlight  talvez valha mais pelo peso histórico; afinal, se são raros os retratos da pobreza dos Estados Unidos, ainda mais escassos são os personagens gays  e pobres dentro desse contexto. É um filme bem realizado, com uma fotografia bonita, uma boa construção narrativa, atuações for

Argumentação (José Luiz Fiorin)

Remontando a Aristóteles, seria de prever que, alguns muitos séculos depois, os estudos de retórica teriam se complexificado e se tornado cada vez mais abundantes. O breve, porém enfático livro do acadêmico Fiorin mostra que não - em fato, são parcas as análises sobre a construção do argumento, mesmo hoje. Talvez este seja um dos motivos por que vivemos em uma era de tanta opinião pronta e tão pouca racionalidade. Com um corpus diversificado, o linguista recorre a diferentes teóricos para mostrar como funcionam os recursos de persuasão dentro de um texto. Sem medo de expor suscetibilidades, o autor recorre a gêneros e temáticas tão distintos quanto um manifesto da Ku Klux Klan, um artigo sobre a parada gay e uma epístola da Igreja Católica. Talvez, contudo, a ênfase em textos políticos devesse ser suavizada - eles acabaram deixando a obra ligeiramente datada, por se referirem a contextos específicos da política brasileira de alguns anos atrás. Apesar da fidelidade na construção dos

O pescador de ilusões (filme de 1991)

A produção megalomaníaca de Guy Ritchie sobre a lenda de Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda é um dos destaques do cinema para este ano - ao menos, no quesito de filmes de ação. Com roteiro bem mais simples e quase 30 anos de idade, "O pescador de ilusões" consegue retomar o mito em uma releitura moderna, tocante e sem precisar de excessos para atingir o espectador. Estrelando Robin Williams, o filme obviamente traz um protagonista carismático, pelo qual é difícil não se apaixonar. No entanto, ao contrário de alguns papéis mais superficiais do ator, aqui temos um personagem que, ainda que seja cativante, é complexo e vai além do carisma fácil. O modo como o diretor (Terry Gilliam) trabalha o tema da violência é magistral - alegórico, delicado, e sem tornar o impacto das situações de trauma menor ou reduzido. Todo o enredo pode ser lido na perspectiva de uma narrativa arthuriana - com a busca do Santo Graal, a sagração do cavaleiro e o desenvolvimento da coragem e da

José (Carlos Drummond de Andrade)

Livro bastante enxuto, de poucas páginas e quantidade reduzida de poemas, "José" já rivaliza na minha lista de preferidos de Drummond, em uma concorrência acirrada com "Claro Enigma". A estrutura da obra ganha pela simplicidade - são apenas 11 poemas, mas quase todos absolutamente antológicos, peças de perfeição. Talvez nem todas as sete faces do gauche  sejam contempladas nesta seleção; contudo, traços arquetípicos de sua produção poética são belamente trabalhados. A metalinguagem encontra-se sintetizada com primor em "O lutador"; o questionamento existencial, em "José"; a prosopopeia (transferindo questionamentos humanos a objetos ou partes do corpo), em "Edifício Esplendor", "As mãos sujas", "Os rostos imóveis"; a genealogia problemática em "Viagem em família"...  A face erótica do eu lírico é, talvez, a única (quase) ausente nesta obra. Ainda assim, vários aspectos do seu discurso polifônico e multi