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Okja (filme de 2017)

Assim como as imagens chocantes nas cartelas de cigarro, lentamente, deixam de agredir o consumidor - simplesmente incorporam-se à paisagem circundante -, o discurso de quem defende a causa animal também, gradualmente, é embotado pela indústria da carne, do leite, do uso animal. Com o tempo, o vídeo mais cruel de abatedouro pouco mais faz do que causar apatia no seu espectador (caso ele esteja, cultural e visceralmente, mais ligado ao que consome do que ao ambiente que prejudica).

O que "Okja" faz, neste contexto, é uma jogada de mestre - em vez de insistir nas cenas de animais sendo trucidados por máquinas, cria um bicho desconhecido, fruto de animação de computador. E é este animal, uma soma de códigos e configurações virtuais, que consegue resgatar nossa consciência de consumo carnista - de uma forma mais intensa do que os seres reais circulando pela indústria alimentícia ao redor do mundo.

Com uma linguagem infantojuvenil, uma protagonista interpretada por uma menina carismática, e atores de peso como Paul Danno e Jake Gyllenhall, o longa-metragem consegue surpreender, entreter, e, sobretudo, comover. É uma obra linda, delicada, mas com grande potencial para revirar nossos estômagos (e consciências).

No entanto, o ponto mais forte da obra é não dar respostas prontas ou simplistas. Se, por um lado, temos uma menina buscando salvar seu animal de estimação de uma morte cruel, por outro há o hábito de comer frango e peixe da heroína. Não há um discurso único em torno da alimentação ou do impacto ao meio ambiente; pelo contrário, os personagens são revelados de maneira contraditória, por vezes agindo de má fé, em uma rede de discursos complicada, entrecruzada, difícil de desatar... e que, como uma boa rede, captura o espectador.


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