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Mostrando postagens de agosto, 2018

A gorda (Isabela Figueiredo)

Para quem, nos últimos anos, vem acompanhando a produção da literatura africana de língua portuguesa, é difícil não enxergar no colonizador branco a figura do vilão. Sem isentar-se da culpa histórica, a escritora Isabela Figueiredo nos mostra o quanto o panorama é ainda mais complexo. Filha de brancos, a autora cresceu assistindo às relações de exploração e preconceito. Emigrada para Portugal, pôde, com o distanciamento, analisar com ainda mais argúcia os laços entre ambos os países. Em seu romance "A gorda", elenca vários elementos além da gordofobia que cerca a protagonista: machismo, estereótipos, ligação com os pais, morte... Enfim, tudo o que é humano entra no romance, que conta com uma escrita bastante simples, mas repleta de trechos poéticos. 

Adua (Igiaba Scego)

"Adua" revela aos leitores brasileiros uma faceta da colonização que nos é totalmente desconhecida: a presença italiana na África. A escritora italiana de origem somali recorre a histórias de seus recentes ancestrais para compor um panorama da violência das relações ao longo de 3 gerações na Somália. Com uma protagonista mulher, vemos todas as facetas de ódio e repressão motivadas pelo sistema imposto ao país: desde a submissão cultural aos símbolos do cinema italiano até o estupro e a invasão do corpo negro.  Apesar da violência necessária ao tema, não se trata de uma obra de difícil leitura. A escrita de Igiaba é bastante ágil e mantém o interesse do leitor aceso ao longo das páginas. Ainda que curto, é um livro bastante provocativo.

O Grande Hotel Budapeste (filme de 2013)

Assim como anunciado em seu título, este filme tem como protagonista o Grande Hotel Budapeste. Dessa forma, uma miríade de personagens diversos desfila pelos corredores atapetados do alojamento de luxo. A ambientação, com ares fortes de onírico, permite aceitar os exageros da narrativa sem pactuar com inverossimilhanças. É uma obra que apela a muitas hipérboles, mas que sabe construir um humor bastante interessante. Inspirada na vida e obra de Stefan Zweig, gera a curiosidade por saber ainda mais deste escritor; aliás, todo o filme é permeado pelo prazer de contar e compartilhar boas histórias. Sua própria estrutura principal (alguém que lê um livro que remete a uma história que leva a diálogos etc.) garante a perenidade do gosto de ser ouvinte e narrador.

Memórias póstumas de Brás Cubas (cordel de Stélio Torquato)

Minha primeira experiência com um cordel longo, "Memórias póstumas" se mostrou uma excelente escolha e ótima adaptação. Como já conheço há tempos o romance em que se baseia, não sei avaliar o seu grau de informatividade a um leitor leigo nas obras machadianas. No entanto, para quem já teve algum contato (mesmo que longínquo) com o original, o cordel só vem a enriquecer o trabalho do escritor carioca ao transpô-lo para uma variante linguística mais ao norte. Além de fazer um excelente recorte, preservando com pequenas alterações as passagens mais significativas do romance, o cordel também sabe como assegurar o interesse pelos versos (mesmo para quem já conhece a história). É uma leitura porreta.

Noites brancas (Dostoiévski)

O mais próximo que Dostoiévski chegou do movimento romântico do século XIX, "Noites brancas" é uma novela que, ainda assim, não se encaixa facilmente nas categorias de nenhuma escola literária.  O protagonista é mais um personagem deslocado do autor, que não consegue adequar-se nem às convenções sociais e nem às de um potencial relacionamento amoroso. E é justamente desse estranhamento que derivam diálogos riquíssimos e profundamente filosóficos. Muito menos que uma trama romântica concretizada, essa obra é uma reflexão sobre o amor e a juventude. Espécie de canto compungido ao sonho de uma noite (branca) de verão, revela o quão frágil e absurdas são as ligações humanas - som e fúria signi(ficando) nada.

Severina (filme de 2017)

À primeira vista uma variação do mote de "A menina que roubava livros", o filme é, na verdade, uma grande ode pelo amor à leitura. Mais do que os destinos dos personagens, o que realmente está em foco é a ambientação da trama em labirintos borgianos. Os protagonistas desencontram-se na (fictícia) vida real, enquanto simultaneamente se preenchem pela leitura e pela escrita. Se não podemos esperar a realização do amor, acompanhamos desenlaces por vezes mais felizes nas diversas narrativas que os cercam. Além do dono de uma livraria e da cleptomaníaca de livros, personagens centrais da história, circulam por "Severina" livreiros, poetas, ouvintes de contos. De uma forma ou de outra, todas as vidas são contaminadas pelo objeto livro. Assim, a ambientação do longa (em um tempo indefinido, mas não tão contemporâneo) é fundamental para que a discussão sobre o livro no suporte papel não perca seu foco. Cheia em lacunas, completa em suas indecisões, a narrativa pouco o

A obscena senhora D (Hilda Hilst)

Entre o vulgar e o hermético, Hilda Hilst figura como uma personagem muito peculiar no cenário da literatura brasileira, que ora convida e ora afasta seu leitor. Esse efeito de aproximação e distanciamento é bastante notável em "A obscena senhora D", no qual temos um fluxo de consciência irrefreável, pontilhado de palavrões e muito sarcasmo. A maior dificuldade ofertada ao leitores é identificar a voz narrativa que conduz cada um dos trechos do discurso; além disso, é preciso pactuar com as cenas, mesmo na sua aparente inverossimilhança. A protagonista da trama, senhora D, é quem - mesmo julgada ser fora da razão - proferirá duras e incômodas verdades. Não há pudores nem na linguagem e nem no desnudamento de hipocrisias cotidianas: tudo é dado de forma crua, sem ornamentos. No entanto, se encaramos a aventura do livro (necessariamente incômodo), também nos depararemos com inusitados trechos poéticos e reflexões surpreendentes. Como a própria vida de Hilda, a de senhor

O vento que arrasa (Selva Almada)

Desde o título, a escritora Selva Almada antecipa elementos que serão fundamentais para esta obra: a solidão, o ermo, a força da natureza, o destino. Ambientado em um cenário isolado, o romance traz à tona os conflitos do encontro inusitado entre um pastor e sua filha adolescente com um mecânico e o garoto sob a sua responsabilidade. A religião está bastante presente, a ponto de misturar-se ao próprio discurso narrativo. Se essa característica a princípio pode incomodar os mais céticos (categoria em que me incluo), aos poucos, conforme percebemos a urdidura da trama, torna-se uma chave importante para entender a sua própria estrutura. Longe da pregação ou dos questionamentos incendiários, o que a escritora faz é torcer esse fluxo religioso, revirá-lo do avesso, abrindo várias possibilidades de interpretação para o leitor. Com poucas páginas, personagens não tão complexos e um cenário quase minimalista, o romance consegue surpreender. A escrita da autora consegue sintetizar di

A ilha dos cachorros (filme de 2018)

Parte da melhor safra do diretor Wes Anderson, "A ilha dos cachorros" é uma animação espetacular. A começar pelos efeitos especiais utilizados para compor a estética visual e sonora do filme: trilha sonora de taikô (bastante inusual ), suas clássicas tomadas em plano frontal e a composição de cenas com elementos diversos. Muito fora do estereótipo de desenho bonitinho, aqui o recurso da animação é utilizado para contar uma boa história - seja através de personagens fofinhos, seja por meio de cenas grotescas. A trama tem alguma similaridade com o bom "Wall-E", mas com muito mais profundidade. Nela, os descartáveis (inclusive cachorros) são  isolados em uma ilha - e não em outro planeta. O limite tênue entre aquilo que é considerado útil e o que se pode jogar fora é uma das grandes reflexões da obra. As críticas sociais são diversas e não poderiam ser mais contemporâneas: falsos discursos científicos, eliminação do que é diferente, construção de fronteiras, abando

Moonrise Kingdom (filme de 2012)

Com protagonistas na pré-adolescência, "Moonrise Kingdom" pode ser tanto um filme empático para os jovens na mesma faixa etária quanto nostálgico para os adultos. A narrativa central gira em torno de um escoteiro órfão, rejeitado continuamente, que decide fugir com a sua namorada pelos bosques que cercam a região isolada em que vivem. A trama revela traços bonitos da construção de uma amizade, por meio de uma linguagem bastante delicada e próxima do olhar dos mais novos. Na ambientação desta inocência, o que pode incomodar alguns espectadores adultos é uma certa "lolitagem" da namoradinha do protagonista. Não sei até que ponto as cenas com biquíni branco molhado não seriam dispensáveis. Fora o incômodo citado, é um filme bonitinho. Rende-se a alguns clichês (como o típico final feliz), mas ainda traz pequenas boas surpresas a quem assiste a ele.

O fantástico senhor raposo (filme de 2009)

Uma das muitas características marcantes do cinema de Wes Anderson (para além de toda a estética visual e sonora única que constrói) é a amplitude do seu público. Sem reduzirem-se a obras infantojuvenis, seus filmes conseguem alcançar diferentes faixas etárias, com mensagens que são válidas a todas elas. "O fantástico senhor raposo" é uma animação bastante interessante para as crianças, mas que traz nas entrelinhas discursos mais complexos. A não aceitação de estereótipos, a insubmissão, o conflito entre civilização e instinto são alguns dos vários temas presentes na trama, que não deixa de ser surpreendente para os mais crescidinhos.