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Mostrando postagens de abril, 2019

Veintidós cuentos (Mercè Rodoreda)

No romance "A velocidade da luz", o protagonista tenta ensinar catalão a um colega de universidade, pois este deseja conhecer mais a fundo a obra da escritora Mercè Rodoreda. Curiosamente, o autor do romance - Javier Cercas - é catalão (ainda que escreva em espanhol). E, aliás, não são raros os casos de artistas da Catalunya que não produzem em sua língua materna, uma vez que o espanhol parece estar intrinsecamente atrelado à divulgação de uma obra (vide outro caso famoso: Carlos Ruiz Zafón). Se somarmos o contexto de uma língua pouco utilizada para a projeção internacional da literatura ao contexto do exílio durante a guerra, a figura de Rodoreda causa ainda mais impacto. Sem deixar de escrever na língua catalã, é ainda hoje um dos nomes mais reverenciados quando se fala na literatura dessa nação, em eterna disputa pela independência. Os 22 contos, escritos na França durante o exílio ao franquismo, constituem uma das primeiras obras reconhecidas pela escritora. Nela, já

Banguê (José Lins do Rego)

José Lins do Rego foi um autor que li com algum afinco durante a adolescência. Lembro-me de não ter ido até o fim em suas obras completas por uma certa overdose de textos memorialísticos, lidos quase em sequência: "Menino de Engenho", "Doidinho", "Banguê", além do bastante conhecido "Fogo Morto". Ao reingressar anos depois na obra de Lins do Rego, percebo que mais um motivo pode ter me afastado durante tanto tempo de sua escrita: a figura do narrador odioso. "Banguê" conta a maturidade do personagem Carlos de Melo, apresentado anteriormente em sua infância e adolescência nos livros de estreia do escritor. Burguês preguiçoso e incompetente (passa todo o tempo na rede, a fazer inveja a Macunaíma), o protagonista apresenta mil defeitos para turvar sua relação com o leitor. Há traços obsessivos no personagem que lembram os de Paulo Honório (em "São Bernardo", de Graciliano Ramos). No entanto, como a linguagem de José Lins não

Primavera num espelho partido (Mario Benedetti)

Livro curto e polifônico, "Primavera num espelho partido" é uma tentativa de amálgama de relatos e experiências muito distintos sobre a ditadura uruguaia. Enquanto Santiago, o protagonista da trama, é um preso político, os demais personagens a seu redor falam e escrevem sobre outras facetas da opressão: o exílio, a espera pela liberdade dos companheiros, a desilusão com os movimentos que deveriam ser libertários, a tentativa de recomeçar em um novo país.  Cada um dos relatos se vale de técnicas narrativas distintas (diário, carta, redação de escola, monólogo interior etc.), o que enriquece ainda mais a estrutura da obra.  Os trechos conduzidos pela voz infantil de Beatriz, filha de Santiago, estão dentre os que mais me agradaram. Benedetti faz um excelente trabalho na criação de uma narradora perspicaz, curiosa, mas não totalmente ingênua. É uma personagem que nos cativa de imediato, mas que propõe questões mais profundas: afinal, o que significa crescer no exílio? Como id

El amor menos pensado (filme de 2018)

Um dos meus atores preferidos, Ricardo Darín geralmente retribui à minha certeza de que qualquer filme em que conste o seu nome será minimamente envolvente. É a sensação que vi comprovada mais uma vez ao assistir a "El amor menos pensado" - ainda que o gênero mais romântico esteja longe das minhas preferências. Antes da exibição, assisti a dois trailers ( "Gloria Bell" e "Happy Hour")  que me revelaram muito do filão no qual a obra se encaixa: as histórias de amor para uma faixa de adultos pós-quarenta. No caso deste filme em específico, pós-cinquenta. A história narrada trata do questionamento da felicidade de um casal de família-margarina: com filho intercambista, apartamento de luxo no coração de Buenos Aires, vivendo uma rotina de discussões culturais, viagens, parceria. O rompimento de um casal que tanto corresponde aos padrões de companheirismo lança uma potente dúvida ao espectador. Em paralelo, histórias de traição, viuvez, desencantamento co

La ridícula idea de no volver a verte (Rosa Montero)

Rosa Montero é uma autora espanhola responsável por uma extensa obra, que abrange temas que vão da ficção científica a aventuras de cavaleiros andantes na Idade Média. Dona de uma linguagem acessível e conectada  com o tempo em que está inserida, situa-se no limiar impreciso entre a alta literatura e os livros de entretenimento. Talvez por se recusar ao enclausuramento na torre de marfim (e por escrever tanto e ser tão lida), nem sempre é bem acolhida por seus pares - o que inclusive se pode notar na sua eleição frustrada a uma vaga na Real Academia Española em 2015. Em "La ridícula idea de no volver a verte", na qual se increvem profundos traços autobiográficos, a escrita de Rosa torna-se quase transparente. A autora parte dos breves diários que a cientista Marie Curie fez após a morte de seu esposo, Pierre, para refletir sobre o falecimento de seu companheiro de mais de 2 décacas, Pablo Lizcano. Assim, uma perda real espelha a outra - e desse conjunto elabora-se a ficção.

Happy Hour: verdades e consequências (filme de 2017)

Típico filme que vale mais pelo trailer do que pela execução - Happy Hour é uma obra que consegue conquistar, à primeira vista, mas que se perde totalmente no meio do caminho. Ou até antes. Com um elenco entre argentino e brasileiro, com a língua oscilando do espanhol para o português, é uma produção bastante dividida. A parte em que domina o narrador argentino - por mais crápula que seja - ainda consegue envolver minimamente o espectador. Já nos trechos interpretados pelos atores conterrâneos, domina um clima de novelão da Globo (e muito do malfeito). O final do enredo, que tenta surpreender, mostra as falhas de uma narrativa confusa e cheia de buracos. Não dá para entender qual é a proposta, gênero ou lição que o filme pretende passar. Em suma, dispensável.

Sons: arranjo: garganta (Ricardo Domeneck)

Conheci a obra de Ricardo Domeneck graças à Flip de 2018, na qual pude ver o poeta conversando sobre seu trabalho editorial, performático, lírico. Para quem ingressa desavisado na leitura, seus poemas podem causar grande estranhamento - afinal, é preciso considerar o contexto em que se situa seu autor para uma fruição mais intensa. Ou, ao menos, não tão desconfiada. Com experimentalismos vários, e citações que vão dos cânones da literatura a Kate Moss, a poética de Domeneck é ampla como o tempo em que está inscrita. Reunidos sob um título que remete tanto à musicalidade quanto à guturalidade, em alguns casos seus poemas são mais instalações sonoras do que propriamente um trabalho com a linguagem. Extrai-se o significado, fica o significante. Obra para ser interpretada, recitada, lida em voz alta. No contexto do leitor solitário, os poemas murmurados não perdem seu valor, mas igualmente não ganham em força. No limite entre o escrito e o oral, uma poesia que merece a declamação.

Lazzaro Felice (filme de 2018)

Com uma divisão muito profunda em duas partes, Lazzaro Felice é quase que dois filmes bastante diferentes, que se conectam por meio de um diálogo tênue, porém preciso.  Na primeira metade da obra, somos apresentados a um cenário e personagens que nos recordam os filmes clássicos do neorrealismo italiano. Assim, em um ambiente rural grassa a pobreza, enquanto a multitude de membros de uma família busca meios de sobrevivência e de escapar ao sistema quase servil de uma fazenda. Se há um elemento que já nos adianta a complexidade da obra, podemos situá-lo no cronológico. Em um contexto em que já há celulares e comunicação rápida, estranhamos o atraso do meio rural da Itália, aparentemente parado no tempo. Na segunda metade do filme, de súbito somos transportados a um ambiente urbanizado, no qual os laços de família já não se sustentam e a pobreza de mantém, acrescida da marginalidade. Além disso, a atmosfera que predomina do meio ao final do filme é a de ficção científica, surrealis

Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (Fernando Braga da Costa)

A experiência levada a cabo pelo estudante de psicologia Fernando Braga da Costa vira e mexe volta à tona, como um exemplo de vida, humildade, solidariedade - sentimentos muito distantes dos que os que nos atingem, de fato,  com a leitura do relato do seu trabalho. Durante quase 1 década, o autor da pesquisa trabalhou de perto com os garis da Universidade de São Paulo, observando e vivenciando o seu cotidiano. Assim, entre vassouras, lixões e obras em construção, foi erigindo uma relação de confiança entre diferentes. Em nenhum momento do livro essa distinção de classe social se apaga; afinal, não levá-la em consideração seria simplesmente travestir-se de gari (como um certo político engomadinho), levando a uma parcial ridicularização da profissão. Escrita quase a quatro mãos, a tese do mestrando em psicologia não só dá voz aos garis, mas também a seu professor orientador. Dessa forma, o estudante delimita as falas próprias e a do docente, ao invés de elaborar um texto que buscasse

Sociologia do açúcar: pesquisa e dedução (Luís da Câmara Cascudo)

Autor de livros que sempre namorei - Antologia da alimentação no Brasil, Lendas brasileiras -, Luís da Câmara Cascudo é um teórico com o qual só tomei contato agora. Os temas democráticos de suas obras, voltadas a recolher histórias, lendas e personagens do Brasil, podem passar a impressão errônea de que se trata de um escritor fácil; entretanto, bastante culto, Cascudo dialoga com a mesma tranquilidade com ditos populares quanto com variadas citações em francês, italiano, latim, alemão... até japonês! No entanto, quem espera um trabalho estritamente acadêmico também verá os livros distanciando-se dessa classificação: com um jeito bastante livre de citar suas referências, sua escrita deixa qualquer amante da ABNT de cabelos em pé. Para quem não se importa nem com a erudição, nem com a fuga de metodologia estrita, os escritos do autor também podem causar incômodo - afinal, trata-se de uma visão histórica construída em meados do século XX, e que incorpora os preconceitos e visões de mu

A velocidade da luz (Javier Cercas)

Javier Cercas é um autor espanhol cujo sucesso começou de forma estrondosa e inesperada, com a publicação de "Soldados de Salamina" - e, como quase todo escritor muito lido, não é bem aceito pela academia. Podemos ver um exemplo desta recepção na resenha sobre "A velocidade da luz", publicada pela Folha de S.Paulo, que foi intitulada como "Espanhol segue fórmula do 'livro comum'". De fato, para quem busca inovações na linguagem e na estrutura do romance, Cercas não é a opção certa. No entanto, o fato de seguir escrevendo de acordo com a fórmula já batida de romance (e de obter tanto sucesso) nos faz pensar até que ponto, de fato, o gênero não corresponde aos anseios e expectativas do leitor deste século. "A velocidade da luz" segue a linha da autoficção - esta espécie de Big Brother literário, em que os limites da realidade e da ficção (ou das fake news ) são difusos, ambíguos. O meu maior problema, durante a leitura, foi a aversão qu