Pular para o conteúdo principal

Veintidós cuentos (Mercè Rodoreda)

No romance "A velocidade da luz", o protagonista tenta ensinar catalão a um colega de universidade, pois este deseja conhecer mais a fundo a obra da escritora Mercè Rodoreda. Curiosamente, o autor do romance - Javier Cercas - é catalão (ainda que escreva em espanhol). E, aliás, não são raros os casos de artistas da Catalunya que não produzem em sua língua materna, uma vez que o espanhol parece estar intrinsecamente atrelado à divulgação de uma obra (vide outro caso famoso: Carlos Ruiz Zafón).

Se somarmos o contexto de uma língua pouco utilizada para a projeção internacional da literatura ao contexto do exílio durante a guerra, a figura de Rodoreda causa ainda mais impacto. Sem deixar de escrever na língua catalã, é ainda hoje um dos nomes mais reverenciados quando se fala na literatura dessa nação, em eterna disputa pela independência.

Os 22 contos, escritos na França durante o exílio ao franquismo, constituem uma das primeiras obras reconhecidas pela escritora. Nela, já se percebem sementes de tramas, personagens e impasses que motivariam seus futuros romances.

Um dos pontos fortes no estilo da autora é a sua capacidade de chocar (mas sem apelar ao melodrama). Como um exemplo, uma das descrições que mais me causaram impacto associa um bebê no ventre a uma bola disforme sem mãos e pernas, um monstro em crescimento. Sem preocupação nenhuma em fazer uma literatura palatável, Mercè Rodoreda escolhe temas instigantes e não se inibe ao provocar o leitor com cenas fortes e associações inusitadas. Mesmo em contos de viés tchekhoviano - nos quais nada aparentemente acontece - a linguagem de Rodoreda garante um mundo de possibilidades e interpretações para quem a lê.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se