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Mostrando postagens de fevereiro, 2020

1917 (filme de 2019)

Filmado com o que aparenta ser um plano sequência ininterrupto, "1917" consegue provocar sensação semelhante à do filme "Dunkirk": seu objetivo, ao retratar a guerra, é nos fazer sentir sua inconstância e imprevisibilidade. Assim, nega discursos que dão a guerra como um fato quase científico, que pode ser previsto nos detalhes; o que vemos corroborado em tela é que tudo é uma grande teia de acasos. Outra proposta patente na obra é a de não romantizar quem participa de um conflito armado. Por mais que seus protagonistas tenham valores morais que os conduzam, a belicosidade é bastante questionada. Além disso, a presença de cadáveres por todos os cantos (quase cenário de filmes de terror) ajuda a desmitificar os supostos atos de heroísmo de soldados. Há uma sequência de cenas, por volta da metade da obra, que é estarrecedora. O diretor consegue combinar a claridade das bombas com a sombra da noite e a paleta de cores do nascer do sol. Esses 15 minutos de filme, com

Adeus, Gana (Taiye Selasi)

O grande incentivo para Taiye Selasi tornar-se escritora veio de Toni Morrison; no entanto, ao contrário da ficção contestatória desta, a narrativa de Selasi abarca temas que reconfiguram os conceitos de negritude e preconceito no mundo atual. "Adeus, Gana" é o livro de estreia e, até agora, único romance publicado pela autora. Ainda assim, é uma obra capaz de propor questionamentos profundos e bastante incômodos. O primeiro deles é a questão da nacionalidade. Fruto de uma geração de africanos de classe média, que transitam pelo mundo sem criar raízes, a autora não se define como ganense, nigeriana e nem estadunidense. Sua resposta às questões sobre nacionalidade é: pergunte-me onde estou, não de onde sou. Assim como sua autora, os personagens do romance transitam por vários países, sem estabelecer vínculos indissolúveis com nenhum deles. E, de certa forma, a trama é um grande questionamento sobre os origens. O mote do romance é a morte do patriarca de uma família, a part

Little Women (Louisa May Alcott) + filme de 2019

O fato de "Little Women" ser um clássico da literatura estadunidense não causa espanto, se consideramos as raízes fundantes da cultura ianque. Muito mais visível que a qualidade literária é o quanto ela corrobora discursos pautados por valores morais - como ser uma boa mulher, uma boa filha, um bom soldado, um bom patriota. Uma espécie de projeção da autora (que, surpreendentemente, era uma mulher bastante progressista), a personagem Jo é a mais interessante de acompanhar ao longo da narrativa. No entanto, mesmo ela acaba submetendo sua irreverência aos padrões de bom comportamento da época. Se o livro chega a ser sufocante com suas tentativas de definir réguas morais, o mais recente filme sobre a obra é acalentador. Com uma fotografia muito bem pensada, passa a sensação de uma história aconchegante. Além disso, ao romper a linha cronológica e esfumaçar os limites entre a biografia da escritora e sua criação, acaba sendo uma produção mais ousada do que a narrativa que lhe d

O caso dos exploradores de cavernas (L. Fuller)

Quase uma distopia jurídica, o mote do livro é um acontecimento em uma comunidade fictícia, no ano de 4300: um grupo de espeleólogos, soterrados em uma caverna, acaba se alimentando da carne de um dos seus colegas para sobreviver. É a partir desse dilema ético e moral que o escritor nos propõe um julgamento do caso, registrando as argumentações tanto dos juízes que querem inocentar os homens envolvidos quanto as daqueles que querem condená-los à morte. Livro bastante usado em cursos de Direito, nem sempre é uma leitura fluente para leigos. Há um certo juridiquês na composição dos discursos que acaba tornando a obra menos palatável. No entanto, no geral é uma proposta bastante interessante (tanto para futuros advogados quanto para quem se interessa pelo estudo da argumentação).

Primeiros poemas (João Cabral de Melo Neto)

Reunião de poemas escritos ao longo de mais de uma década, este livro de estreia de João Cabral de Melo Neto causa bastante estranhamento. Conhecido por sua poética precisa, enxuta, é de causar espanto a primeira fase do escritor - para lá de verborrágico. Além do estilo (que peca pelo excesso), não há uma delimitação dos temas abordados na obra. Há poemas sobre teatro; em homenagem a outros poetas; metalinguísticos; sobre cinema; surrealistas; hiperbólicos. O conjunto é mal amarrado e não convence. É apenas no último poema da série que encontramos uma verve poética mais legítima. Sorte a dos leitores que, após tantos exercícios malfeitos, Melo Neto encontrou a sua voz.

Blood: uma história de sangue (J.M. DeMatteis & Kent Williams)

O prefácio de Blood, escrito por DeMatteis, me cativou. No entanto, percebi ao final da obra o quanto deveria ter levado as palavras de apresentação do autor mais a sério: "Blood" é um livro narrado de forma intuitiva. Para aqueles que são fãs de uma racionalidade fria, a obra causará estranhamento - quando não rejeição. Li quase metade do livro com a intenção de abandoná-lo. É apenas quando há um deslocamento temporal do protagonista que comecei a captar a intenção da narrativa, que tem um tom quase mítico (no qual nada se explica, ainda que a origem de muito do que nos rodeia seja revelada). O final da trama consegue amarrar todas as eventuais pontas soltas que possa apresentar. É um livro que promove uma experiência intuitiva, sensorial. Assim, depende de nossa abertura para experimentar o diferente e de baixarmos nossa guarda para diferentes formas de arte.

Mary Shelley (filme de 2017)

Conheci um pouco mais detalhadamente a biografia de Mary Shelley em 2020, durante minha leitura de "Frankenstein". Assim, pude comparar alguns fatos do filme com o que já havia estudado sobre a biografada. Como obra biográfica, "Mary Shelley" é um filme que atende às expectativas. Não sei se, para quem não conheça nada sobre a vida da autora, seja um longa que consiga ser autoexplicativo. As referências à importância da mãe da protagonista - a feminista Mary Wollstonecraft - talvez não sejam captadas por alguém que desconheça essas raízes. O filme traz uma pátina feminista à narrativa, sem ser anacrônico. Além disso, acerta na escolha do cenário sombrio que permeia a obra, bem como na seleção de atores bastante convincentes nos papéis que desempenham. Além da excelente performance da protagonista, ver a atuação de um verossímil Lord Byron nas telas já compensa a experiência de assistir à produção.

Democracia em vertigem (filme de 2019)

Um pouco ressabiada com o fervor que o filme causou, só me senti estimulada a assistir a "Democracia em vertigem" após conhecer um dos trabalhos prévios da diretora - o excelente "Elena". E, mais do que a política, foi o fato de ser também uma obra permeada de visão autoral e trechos da própria biografia de Petra o que mais me atraiu para este documentário. Em nenhum momento a diretora se isenta da sua posição ideológica durante a narrativa. Nesse ponto, é um documentário que foge à voz impessoal de uma terceira pessoa, assim como não trata a política como algo distanciado do dia a dia de cada um de nós. Petra revela a polarização de sua própria família para, a partir dela, entender as origens da fragilização democrática do Brasil atual. Assim, conforme acompanhamos a investigação da sua árvore genealógica, escavamos nossas próprias raízes - na tentativa de entender como as discussões sobre política no churrasco da família reverberam um caos muito mais profun

Viver duas vezes (filme de 2019)

Com o excelente Oscar Martínez no papel de protagonista, o filme "Viver duas vezes" consegue render boas risadas e reflexões do espectador. Ainda que se trate de uma produção espanhola, o humor sarcástico do ator argentino permeia e traz graça ao longa. A narrativa trata da delicada questão da memória, ao retratar o personagem principal recém-diagnosticado com Alzheimer. Assim como no excelente "Para sempre Alice", vemos o quanto a doença pode afetar até professores universitários, renomados justamente por sua capacidade mental. Ainda que tenha um desfecho um tanto piegas e peque pela fotografia, não deixa de ser uma obra interessante. Além das atuações excelentes, traz um retrato bastante contemporâneo da nossa realidade - o que sempre ajuda a criar identificações e paralelos.

Os livros que devoraram meu pai (Afonso Cruz)

Com uma premissa quase tão interessante quanto o  título, o livro de Afonso Cruz é feito na medida para ratos de biblioteca de todo tipo. No entanto, considerada enquanto obra de incentivo à leitura, tenho meus questionamentos em relação ao papel que possa cumprir. Voltada para um público infantojuvenil, a narrativa traz um tom que é mais convidativo aos "iniciados"; para uma criança ou jovem não leitor, creio que tem pouca capacidade persuasiva. Ademais, a obra traz o inconveniente de dar vários spoilers de clássicos universais, o que sempre pode ser um empecilho na formação de novos leitores.

Só para maiores de cem anos (Nicanor Parra)

Geralmente meço o quanto gostei de um livro pela quantidade de marcações que deixo nas páginas, já que tenho o hábito de sinalizar os trechos que mais me agradaram. No entanto, logo no início da antologia de Nicanor Parra desisti de qualquer tentativa de seleção, pois a obra me arrebatou por completo. O poeta chileno, irmão da cantora Violeta Parra, consagrou-se pela feitura dos seus antipoemas. A desconstrução que propõe vai além da quebra do ritmo, da métrica e do rompimento com os temas formais. Há um permanente elemento de surpresa nos poemas, que funcionam quase como desfechos de contos - súbitos, intensos, ressignificadores. A irreverência de Nicanor é deliciosa, pontuando os versos com uma ironia fina (que, às vezes, deságua em uma melancolia profunda). A seleção publicada pela Editora 34 comporta diversos estilos poéticos postos em prática por Nicanor, o que permite ter um bom vislumbre da sua obra. O posfácio da tradutora ao final é absolutamente imperdível. Assim como os

Elena (filme de 2012)

Antes de assistir ao brasileiro indicado ao Oscar ("Democracia em vertigem"), quis conhecer um pouco do cinema de Petra Costa. "Elena" foi minha porta de entrada para a obra da diretora - que me abriu não só para a sua linguagem cinematográfica, mas também para sua biografia.  Neste documentário sensível e profundamente pessoal, Petra nos narra a história de sua irmã Elena, que cometeu suicídio no início da juventude. Assim, acompanhamos não só a perspectiva da diretora adulta, como também a da menina de 7 anos que descobre que sua única irmã se matou. Com o olhar da maturidade, a diretora revê sua irmã - e, ao recuperar desde filmagens de aniversário a gravações em K7s, vemos o quanto Elena era uma jovem inteligentíssima. Suas falas ao longo do filme me lembraram um pouco o tom de uma Ana Cristina César, com uma irreverência avassaladora.  A produção de Petra é uma justa homenagem à irmã que conheceu por apenas 7 anos, mas que marcou todas suas decisões poste

História de um casamento (filme de 2019)

As relações humanas são compostas de muitas camadas - e a beleza deste filme é saber contrapô-las, sem que uma anule a outra. Conseguimos observar várias facetas de um casamento ao longo de um tempo relativamente curto, mas que envolve os protagonistas em uma espiral de dor e autoconhecimento. Sem muitos acontecimentos, a trama se sustenta basicamente no diálogo e desencontros do casal. Nesse aspecto, é uma obra que ganha muito pela escolha adequada dos intérpretes: tanto Scarlett Johansson quanto Adam Driver conseguem construir personagens bastante humanos, que angariam a identificação e empatia do espectador. A maior falha da obra, que se propõe a ser um retrato de diferentes aspectos do envolvimento dos protagonistas, é tomar um dos lados. Acompanhamos a história do marido com muito mais emoção do que a da esposa; assim, apesar de ser um filme tão profundo, ainda não dá conta de contar todos as versões de uma mesma história de vida.

The Underwater Welder (Jeff Lemire)

São vários os elementos que tornam esta produção de Jeff Lemire instigante - dentre eles, talvez o que mais desperte a atenção inicialmente seja o retrato de uma profissão absolutamente desconhecida - a do soldador subaquático. Além do estranhamento próprio de uma função social quase nunca comentada, há o paradoxo daquele que consegue trabalhar com fogo abaixo d'água (um dos muitos contrastes que a história traz). A narrativa de Lemire trabalha ciclos que ficaram em aberto, relações entre pai e filho que se espelham nas suas falhas e ausências. Além do recurso visual da imagem na página (trabalhada em quadros não convencionais), o autor recorre à poesia para compor sua trama. Assim, somos guiados por um canto - quase como o das sereias - para imergimos nessa história de perdas e reavaliação do passado.