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Mostrando postagens de janeiro, 2020

Tina - Respeito (Fefê Torquato)

Assim como o personagem Jeremias assume um discurso contestatário na excelente graphic novel "Pele", Tina ressurge em uma trama cheia de questionamentos neste novo volume do selo MSP.  A sensibilidade da aquarela usada pela artista Fefê Torquato contrasta com a força da personagem, que se recusa a permanecer passiva em uma situação de assédio sexual. Ainda que a obra dialogue muito com o movimento Me Too, é suficientemente criativa para ser mais do que um pastiche da realidade. Além disso, a forte personalidade de Tina é o fio condutor da narrativa; assim, não se trata de uma obra com personagens criados apenas para justificar a pauta polêmica. Com diálogos potentes e um aproveitamento inusitado dos espaços da página, a autora consegue criar um gibi bastante surpreendente. Uma das melhores surpresas das Graphic MSP.

O menino e o mundo (filme de 2014)

(Resenha de 2014): Ainda que fosse só pela experiência estética, "O menino e o mundo" já seria um bom filme. A linguagem da animação usa aquarelas, recortes, colagens, efeitos que lembram quadros, videogames, clipes musicais, caleidoscópios... É uma imersão em diversas possibilidades artísticas, todas construídas com extremo bom gosto e muito bem contextualizadas em relação a cada momento da trama. Se, em um primeiro momento, os riquíssimos efeitos visuais nos capturam, em um segundo momento já são nossos ouvidos que são conquistados com a espetacular trilha sonora - de Barbatuques a Emicida, ela é eclética e rica. Mas, como não bastam efeitos visuais e sonoros, um filme precisa também de uma boa história. E é neste ponto que "O menino e o mundo" se supera. Inicialmente contada com uma linguagem bastante infantil, aos poucos a narrativa mostra todo o seu potencial. As críticas ao nosso modo de vida, à destruição do planeta em nome do dinheiro, à falsa democracia

Ricardo III (Patrick Warren)

De todas as peças que conheço de Shakespeare até agora, "Ricardo III" foi uma das mais envolventes - e, ao mesmo tempo, das que mais me geraram estranhamento. É difícil não ser arrastado para dentro da leitura pelo discurso persuasivo do rei coxo, que nos arrebata já na cena inicial; por outro lado, trata-se de uma obra com um contexto histórico que hoje nos é muito distante, além de uma quantidade imensa de personagens. Ao transpor todas essas variáveis para a linguagem do mangá, Patrick Warren realiza um trabalho que deixa a desejar. A multidão de figuras históricas torna a obra bastante difícil para um leitor não iniciado; além disso, os recortes de cenas só enfatizam o efeito lacônico da adaptação. Na edição disponível no Brasil, as imagens saíram com qualidade baixa, o que só acentua os defeitos encontrados na leitura. Com mais defeitos que qualidades, não é uma obra que compense os percalços do leitor.

Dentro da noite veloz (Ferreira Gullar)

Comecei a ler a obra completa de Ferreira Gullar em 2016, na tentativa de encontrar em sua produção poética elementos que aliviassem o ranço da pessoa pública; no entanto, os primeiros livros publicados pelo maranhense só acentuaram minha antipatia. Assim, não foi sem surpresa que me vi completamente envolvida por "Dentro da noite veloz" - que já se tornou um dos meus livros de poesia nacional preferidos. "Romances de cordel", que antecede essa publicação, parece ter sido o ponto de virada na carreira de Gullar; ao entrar em contato com suas raízes nordestinas e elaborar as rimas típicas do improviso, permeadas de críticas sociais, o poeta encontra seu tom e ritmo. É assustador observar a mudança política do autor ao longo do tempo - afinal, o velho conservador foi, em algum momento, o jovem que acreditava nas mudanças sociais. É essa faceta do poeta que encontramos nesta obra, cujo título é uma alusão ao assassinato de Che Guevara. Quase todos os poemas do co

A odisseia dos tontos (filme de 2019)

É uma pena que "A odisseia dos tontos" não tenha causado a mesma repercussão por aqui que "Relatos selvagens"; ainda que se tratem de filmes bastante diferentes, vi na obra de 2019 uma intertextualidade implícita com a história protagonizada por Ricardo Darín no longa de 2014. Outro fato curioso é o quanto este filme repercute temas que também eclodiram no brasileiro "Bacurau". Mesmo que a pegada argentina seja muito mais humorística e menos alegórica que nossa produção nacional, o mote de ambas as obras é basicamente o mesmo: uma pequena comunidade, no interior do país, que decide levantar-se contra aqueles que lhes prejudicaram. A justiça feita pelas próprias mãos - e contra o sistema - é o que move os personagens em ambas produções. Ainda que seja um filme bastante masculino, acho interessante os lugares ocupados pelas mulheres nesta obra - a empresária de sucesso na cidade, a mulher que sabe desde o princípio que um plano está sendo articulado, a m

Uma casa no fim do mundo (Michael Cunningham)

Iniciei a leitura de "Uma casa no fim do mundo" bastante desconfiada, sem acreditar que em algum momento a obra fosse me fisgar. Apenas depois de passarem umas 50 páginas é que me rendi à escrita de Michael Cunningham - que de início me pareceu bastante adjetivesca, permeada de frases de efeito. A morte banal de uma personagem é que me fez ver que o objetivo do autor não era propor nenhuma moralidade ou exagerar seu tom narrativo - pelo contrário, boa parte do livro convida o leitor a uma análise profunda das relações e hábitos que formam o cotidiano. No princípio, os protagonistas da trama me causaram certa repulsa; tenho bastante dificuldade em criar laços de empatia com meninos drogados da classe média (o que me levou a não gostar de "O apanhador no campo de centeio", por exemplo). É conforme os personagens saem de seu círculo vicioso de sexo, drogas e rock'n'roll para embarcar na vida adulta que, para mim, o livro vai ampliando seu campo de discussão d

Garopaba monstro tubarão (Paulo Scott)

Os poemas de Paulo Scott não me conquistaram de imediato; apesar de curto, "Garopaba monstro tubarão" foi, para mim, um livro de leitura pausada. Ainda que o gênero exija o olhar mais atento, aqui tratou-se de uma experiência diferente: mesmo brecando o ritmo de leitura, o sentimento de incompreensão de alguns poemas continuou a me perturbar. Dividido em quatro partes - "Livro do outro", "Redemoinho", "Livro do mundo" e "Flutuação", o livro dá voz poética a temas diversos. Ainda que a abordagem política seja forte, alguns poemas mais líricos e sentimentais aparecem no conjunto. Do todo, os poemas caracterizados por uma militância mais marcada foram os que mais me cativaram. Questionamentos sobre o momento político atual são feitos de forma bastante coerente e dolorosa, propondo um diálogo profundo com o leitor.

Dois papas (filme de 2019)

Em tempos de extremismos religiosos, "Dois papas" é um filme que propõe o diálogo necessário sobre a crença. Afinal, perceber as discordâncias na alta cúpula de uma mesma vertente religiosa ilumina as possibilidades de interpretação dos livros sagrados - confrontando a ideia de uma verdade única, aplicável a todos os povos. Com exceção dos flashbacks que retomam a vida do papa Francisco, a obra aposta em uma linha muito mais argumentativa do que narrativa. Boa parte do longa se desenvolve na exposição das ideias dos papas Francisco e Bento XVI, que é realizada de modo respeitoso (ainda que não sem conflito). Empregando limites difusos entre a realidade e a ficção, é certo que há uma tendência do diretor em valorizar bastante a figura do papa atual. No entanto, não se trata de uma idealização total; as falhas de Francisco não são ignoradas na narrativa, bem como a tolerância de Bento XVI (que aceita um representante com ideias contrárias às suas) é louvada.

Luz que fenece (Barbara Baldi)

O que mais desperta a atenção na HQ de estreia de Barbara Baldi é, sem dúvida, a ilustração. E não é que a trama proposta seja fraca ou inverossímil - ela é apenas não é páreo frente ao traço da artista italiana. Esse descompasso pode ser notado nas sequências de quadros sem fala, usuais ao longo da narrativa. A história em si é contada de forma um tanto apressada, com um desenvolvimento raso das personagens; e, para uma obra que exige que descansemos nosso olhar para acompanhar a beleza de cada ilustração, não é o ritmo mais adequado.

In Other Words (Jhumpa Lahiri)

Quase sem perceber, já li quase toda a produção de Jhumpa Lahiri - uma autora contemporânea que lida com destreza sobre questões doloridas de nossa época, como imigração, pertencimento e o não lugar. As temáticas recorrentes na obra de Jhumpa não são casuais: filha de imigrantes indianos, a autora cresceu dividida entre culturas, línguas e crenças. Uma das muitas restrições que essa fragmentação impunha era a falta de uma língua materna: obrigada a falar inglês na escola e a conversar apenas em bengali com a família, a escritora nos conta como seu próprio idioma (e seu instrumento de trabalho) sempre foi marcado com o signo do interdito. Essas e outras razões a levaram a optar por um autoexílio voluntário de suas pátrias linguísticas: no começo dos anos 2000, Jhumpa se mudou com toda a família para a Itália, onde passou a falar e escrever apenas no idioma italiano. "In Other Words" é o relato dessa jornada, permeado de reflexões arrebatadoras sobre a linguagem, imigração

Um pedaço de madeira e aço (Chabouté)

"Um pedaço de madeira e aço" parte da mesma premissa de um de meus livros ilustrados/quadrinhos/novela gráfica favoritos: o excelente "Aqui", de Richard McGuire (que, por sua vez, inspirou o roteiro do estranhamente arrebatador filme "A Ghost Story").  Assim como Richard McGuire ambienta sua linha narrativa em um único ponto, contando a história do terreno de uma casa com o passar dos milênios, Chabouté também fixa seu olhar. No entanto, aqui temos uma perspectiva ligeiramente mais móvel, já que o artista francês acompanha não um lugar, mas um objeto ao longo do tempo: um banco de praça. Sem diálogos, toda a trama depende da habilidade narrativa das ilustrações. E, nesse trabalho, Chabouté é muito bem-sucedido: capaz de criar ambiguidades e múltiplas leituras em uma sequência de quadrinhos, sua história a todo momento desafia o leitor a ser mais atento, a saber acompanhar as sutilezas do traço e as várias camadas da história. Ainda que rápido, é uma