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Mostrando postagens de outubro, 2016

O corajoso coração de Irena Sendler (filme de 2009)

Histórias de resistência são raras - em um mundo de globalização, compartilhamentos, formação de opinião em massa, qual seria a vantagem de permanecer fora das correntes ideologicamente dominantes? Voltando quase um século no tempo, em um contexto de guerra, com o extermínio de populações inteiras friamente planejado, parece ainda mais inverossímil lutar contra uma força tão suprema. A história de Irena Sendler é marcada com tamanha coragem que, após o final do filme, tive de procurar informações sobre a sua vida para conseguir, de fato, acreditar nos aspectos retratados. Em alguns momentos, a película não é crível - não por falta de coerência interna, mas porque a ousadia da protagonista é impensável. Durante a formação do gueto de Varsóvia, Irena, uma assistente social, decide contrabandear as crianças para fora da região delimitada por Hitler. Assim, destinava os pequenos a famílias polonesas dispostas a acolhê-los, falsificando identidades e evitando a morte de nada m

Claro Enigma (Carlos Drummond de Andrade)

Escrito pouco após a Segunda Guerra Mundial, Claro Enigma  é um livro soturno e melancólico. Em cada poema de Drummond há um profundo pesar em relação a vários dos aspectos da vida: o amor, as memórias de Minas, a morte, as reflexões sobre a sociedade...  A primeira parte, "Entre lobo e cão", retrata um pouco da nossa condição humana (tão próxima ao instinto selvagem). O poema "Legado", que ironiza a clássica pedra no meio do caminho, e "Memória", estão entre meus escritos favoritos.  A segunda parte, "Notícias amorosas", pode enganar em uma leitura mais superficial, mas é, na verdade, uma coleção de poemas sobre a nossa falta de amor. A terceira parte, "O menino e os homens", registra, além de conflitos de geração, uma breve homenagem aos Mários: Bandeira e Quintana. A quarta parte, "Selo de Minas", retoma a terra natal de Drummond, assim como suas memórias de infância. A quinta parte, "Os lábios cerrados", é

Juventude hitlerista (Susan Campbell Bartoletti)

O nazismo é um tema bastante explorado pela mídia, pelo cinema, presente de tal forma em nossa formação histórica que podemos chegar inclusive a pensar que já conhecemos o suficiente sobre o assunto. No entanto, basta olhar a situação política atual (em quase qualquer lugar do mundo), o recrudescimento da extrema direita, o orgulho em se dizer hétero, de classe média, cristão (e o orgulho de desprezar quem não pertence a essas categorias) para vermos que não sabemos nada sobre o que foram os movimentos fascistas. Um breve livro, como o de Susan Bartoletti, já nos mostra o quão mais grave foi essa questão - com aspectos de crueldade e manipulação que precisam ser relembrados, para não se repetirem. O estudo da autora mostra, de forma geral,  como era a juventude na época de Hitler, abrangendo tanto os que eram a favor quanto os que eram contra ele. Conhecer como era o processo educativo-manipulatório do nazismo é assustador - afinal, foi ele, em grande parte, que levou os alemães a pe

É isto um homem? (Primo Levi)

Adiei por muito tempo a leitura de É isto um homem? , por mais que soubesse que se tratava de um livro icônico para refletir sobre o nazismo, e, além do mais, de uma obra bastante curta (cerca de 150 páginas). No entanto, apesar de sua breve extensão, é um livro muito poderoso. Durante o processo de leitura, se, por vezes, caía no sono (pelo hábito de ler no ônibus e não pela falta de interesse na narrativa), logo era assaltada por pesadelos. Por mais que Primo Levi não seja um escritor prolífico, suas descrições, pontuais, são suficientes para criar o panorama do que foi a terrível Auschwitz. O autor conta como o seu trancafiamento talvez tenha sido até um pouco menos intenso, considerando que o fim da guerra já se aproximava e que os alemães precisavam da mão de obra judaica escravizada. Mesmo assim, não há alívios de nenhuma espécie na trama. Cada momento vivido pelos prisioneiros é marcado pela dor, pelo confinamento, pela subjugação a ordens aleatórias e autoritárias. A p

Alguma poesia (Carlos Drummond de Andrade)

Uma pedra no meio do caminho, Cidadezinha qualquer, Poema de sete faces... O primeiro livro de Drummond contém tantos de seus poemas antológicos que a impressão que se tem, durante a leitura, é a de estar diante de algum capítulo de livro didático destinado à sua obra. Talvez por sua irreverência modernista, talvez pelo tamanho (geralmente curtos), esses poemas já foram tão explorados como recurso de ensino que é difícil desfrutar da obra por si. Logicamente, se esses poemas são tão antológicos é justamente por sua qualidade literária e, também, por oferecerem tantos traços que serão perenes na obra drummondiana. No entanto, por reservar tão poucas surpresas (já que boa parte do livro é conhecida e repisada nas escolas), não é minha coleção de poemas favorita do mineiro. "Poema de sete faces", primeiro de todos os poemas publicados por Drummond, é surpreendente por sua capacidade premonitória: em cada uma das sete estrofes, oferece temas que serão sempre presentes na

Crime e castigo (filme de 1970)

Dostoiévski é um autor de que gosto muito, mas não é o meu russo preferido. No entanto, se há um aspecto em sua obra que é mais forte do que em todos os outros autores do mesmo contexto é o seu caráter perturbador. A descrição da consciência dos personagens e a polifonia, em conjunto, atuam de forma impactante sobre o leitor, que não fica imune a tantos discursos intensos e provocadores. O livro Crime e castigo  possui essa capacidade em uma larga escala, e o fato de a leitura nos fazer imaginar cada cena, cada passo de Raskólnikov é algo que nos atiça enquanto participantes de uma trama com traços de suspense. O filme russo dos anos 70, contudo, ainda que não seja melhor que o livro (mas talvez seu complemento perfeito), consegue ser mais perturbador que o original. Tive de assisti-lo em partes (com quase 1 ano de distanciamento), tal o seu feito. Os diálogos são duros, o ambiente é sufocante, as interpretações são preciosas e sabem reconstruir o ambiente de pesadelo dos delí

As aventuras de Hans Staden (Monteiro Lobato)

Monteiro Lobato era um dos meus autores preferidos da infância, e, aproveitando a coleção quase completa de suas obras comprada a preço de banana nos sebos da vida, decidi dedicar-me à releitura desses livros infantis. No entanto, ainda que previsse um novo olhar sobre as histórias do Sítio do Pica-pau-amarelo, não imaginava que seria um processo tão doloroso. Tia Nastácia é humilhada a cada momento (principalmente por Emília), o que torna muito difícil continuar sentindo simpatia pelos personagens infantis de Lobato. Confesso que, nas obras em que Nastácia não aparece, sinto um alívio na leitura - mas é temporário. As aventuras de Hans Staden  talvez tenha sido o livro que mais me impressionou na infância - e não é à toa, já que as descrições de canibalismo são para tirar o sono de qualquer criança. Ao relê-la, senti um certo conforto quando percebi que a ausência de tia Nastácia significaria talvez um controle na língua ferina e maldosa de Lobato - mas foi ledo engano. Se nã

De Cape Town a Muscat: uma aventura pela África (Guilherme Canever)

Um livro de viagem precisa de uma diagramação bonita, convidativa - este é o caso da obra publicada pelo professor e blogueiro Guilherme Canever, que aposta em uma edição simples, porém eficiente. Ainda que tenha um formato pequeno e capa mole, o livro surpreende pelos detalhes estéticos, como uma folha de guarda com as fotos dos carimbos de passaporte do autor. Mais um diário de viagem do que um guia, o que o leitor encontrará nesta obra será um relato das aventuras de Canever por alguns dos países da África. Não há, entretanto, informações detalhadas de como chegar aos destinos, nomes de ônibus, hotéis ou outros dados mais específicos. A obra é um aperitivo para abrir o apetite pela viagem, não o prato principal. Alguns trechos do livro têm caráter excessivamente pessoal (como a descrição dos chiliques da namorada), de pouco interesse para o leitor. No entanto, no geral é uma obra bem realizada.

Contos (Guimarães Rosa)

O livro reúne alguns dos contos de Sagarana: "Sarapalha", "Duelo" e "A hora e a vez de Augusto Matraga". Com a presença de glossário e muitas questões sobre cada conto, além de uma cronologia da vida do autor, é uma obra com finalidade didática. Este aspecto pode ser inclusive notado pelo aspecto de descartabilidade da obra, editada com um papel horroroso. Mas, enfim, não deixa de ser um método de aproximação de Rosa.

Macanudo 11 (Liniers)

Com Henriqueta e Fellini, meus personagens preferidos de Liniers ilustrando a capa, o livro traz algumas das tirinhas mais famosas desta dupla. Há ainda outras tiras com referências intertextuais e literárias muito boas, além de quadrinhos feitos por outros cartunistas durante o período de licença-paternidade do autor. Uma obra deliciosa, como tantas outras do quadrinista.

Guerra e paz (filme de 1956)

A adaptação do clássico de Tolstói para a linguagem cinematográfica conta com inúmeras dificuldades, a principiar pela extensa duração da obra. Como transpor quase 2500 páginas de enredo em um filme? Para o diretor King Vidor, a solução foi prolongar a duração da película para quase quatro horas - e, ainda assim, sem dar conta de todos os elementos da história. Para uma produção dos anos 50, não deixa de ser impressionante a qualidade técnica das filmagens. Ainda que não sejam muitos os recursos disponíveis para efeitos especiais,  as cenas de batalhas são bastante verossímeis e, em um take ou outro, têm caráter épico. Outro ponto de acerto foi a escalação de Audrey Hepburn para o papel de Natacha Rostova - para quem leu o livro, fica difícil imaginar outra atriz que funcionasse tão bem para esta personagem. A ingenuidade sapeca da protagonista combina muito bem com a figura meiga da famosa atriz de meados do século XX. Mesmo somados os pontos positivos, contudo, é u

Guerra e Paz (série inglesa de 2016)

Se adaptar um romance monumental como Guerra e Paz  para a linguagem cinematográfica já é um desafio, o que dizer quando essa transposição é feita por culturas absolutamente distintas,  longe no tempo e no espaço?  A série recente da BBC conta com atores excelentes, trilha sonora ótima, alguns trechos falados em russo (ainda que poucos), e uma fotografia tão, mas tão linda que é de chorar. No entanto, para ajudar na caracterização dos muitos protagonistas da trama (reduzida a seis episódios), alguns aspectos do livro foram exagerados. Um dos exemplos que mais chocou os russos na adaptação foi ver a Condessa Bezhukhova ter um caso incestuoso com o próprio irmão, elemento não previsto na trama original de Tolstói. No entanto, apesar de todas as superficializações e falta de fidelidade aos tomos originais, foi uma série que me encantou bastante. A linguagem é mais romanceada do que a de Tolstói, mas cumpre bem a função de emocionar o espectador. Tanto as cenas de sofrimento causa

Guerra e Paz (Liev Tolstói)

Uma das vantagens de se dedicar à leitura de um calhamaço como Guerra e Paz  (com suas 2500 páginas) é o tempo de envolvimento com cada um dos enredos e personagens. Ao longo de alguns meses, os protagonistas, mesmo com suas falhas, se tornam quase amigos do leitor, em um processo de interlocução que é mais profundo do que o de um romance convencional. No caso de uma obra escrita por Liev Tolstói, os muitos temas abordados na narrativa são apresentados de forma magistral. Há uma certa dificuldade inicial na compreensão do enredo, considerando o grande número de personagens e nomes que aparecem na trama. No entanto, superado este obstáculo inicial, não há como não se envolver com narrativas que são tão humanas. O livro também conta com um posicionamento ideológico bastante forte: é um libelo contra a guerra e, em especial, contra Napoleão. O general francês é constantemente ridicularizado por Tolstói, que não acredita na força de figuras históricas no desenvolvimento dos fatos;

A louca da casa (Rosa Montero)

Já havia escutado falar muito de Rosa Montero (principalmente em canais de booktubers de língua espanhola), mas ainda não havia lido nada da autora. Aproveitando uma promoção da Bienal, adquiri meu primeiro livro da escritora, talvez uma boa porta de entrada à sua obra justamente por ser uma espécie de autobiografia, que nos revela muito da personalidade de Montero. A louca da casa  é um título retirado de uma frase de Santa Teresa, e se refere à imaginação. Assim, a obra de Rosa não diz respeito apenas à própria vida, mas também relata casos muito interessantes de outros escritores para mostrar a relação deles com a sua capacidade de sonho, criação e devaneio. As histórias de vida pinçadas de escritores importantes na vida de Montero são tão essenciais quanto os capítulos de teor exclusivamente autobiográfico. No fim, seja ao relatar uma história própria ou alheia, o livro é um grande diálogo sobre a literatura em todas as suas formas.

Sociedade dos poetas mortos (filme de 1989)

Perdi a conta de quantas vezes assisti a esse filme ainda na escola, que era um dos queridinhos dos professores de Língua Portuguesa. Ao reassisti-lo muitos anos depois (agora, na função de docente, e não mais de aluna) só pude entender e confirmar o amor de quem é de Letras por essa obra. Talvez não seja o filme perfeito, mas é um dos mais delicados ao trabalhar com a temática da poesia e dos significados e possibilidades que ela carrega. Ademais, como professora, tive a impressão de que muito da filosofia do personagem John Keatings ficou gravado na minha memória - me identifiquei com muitas práticas que aplico nas minhas aulas, como a importância de desaprender, de negar fórmulas, de não acreditar em um resultado único para a interpretação de um texto. Além do enredo que toca em questões fundamentais para a adolescência - o conflito de gerações, o encontro de uma vocação, as primeiras paixões, o suicídio - as atuações de Robin Williams e do jovem Ethan Hawke são marcantes.

Parente é serpente (filme de 1993)

O filme retrata a semana entre o Natal e o Ano Novo de uma família italiana, quando todos os filhos e netos se reúnem na casa da nonna. Talvez para quem não compartilhe tantos elementos da cultura italiana, a obra seja ainda mais engraçada, por parecer mais estereotipada - por outro lado, para quem vem de família de imigrantes, é muito fácil reconhecer gestos, entonações e alterações de humor como bastante verossímeis. Não me pareceu uma obra tão chocante como alguns filmes do neorrealismo italiano. Feios, sujos e malvados , por exemplo, também trata de conflitos de família de uma maneira muito mais crua (até porque retrata a miséria, e não a classe média). O ponto alto do enredo é o final surpreendente, ainda que, até pelo título, já se possa prever que a história não acabará bem (ao menos, não para todos). Rende algumas risadas, mas não chega a ser surpreendente.

Caçadas de Pedrinho (Monteiro Lobato)

A releitura das obras infantis de Monteiro Lobato é um projeto que estou conduzindo aos poucos, não só para não ser tão cansativo, mas também para não ficar com muita raiva do autor. Apesar de o contexto histórico e familiar de Lobato ter de ser considerado na análise de seus livros, é difícil não deixar vir à tona a indignação. Em algumas obras, é um pouco mais natural entrar nas histórias do sítio, vendo com bons olhos o pioneirismo na literatura infantil brasileira. Em relação a outras, no entanto, a soma de preconceitos de tipos diversos torna a leitura bastante desagradável. Caçadas de Pedrinho  é uma das tramas que se encaixa nesta última categoria. Não só tia Nastácia é constantemente rebaixada na obra, como a naturalização das caçadas (crianças com espingardas e facas matando uma onça) é algo bem pouco aceitável nos tempos atuais. Talvez seja um dos mais cruéis da saga em relação à sua única personagem negra: as crianças não só afirmam que a onça não irá comer car

Macanudo 9 (Liniers)

A capa deste volume de Macanudo é a querida Olga, o que já diz muito sobre a qualidade do livro. Gosto muito dos quadrinhos de Liniers - ainda que alguns sejam subjetivos demais, conseguem me levar a reflexões e a um estágio de pensamento que é quase uma meditação sobre a vida. No entanto, no amplo leque de personagens criados pelo autor, tenho graus diferentes de identificação. A personagem Olga, um bichinho azul que representa a imaginação de uma criança e que só sabe falar uma palavra - Olga -, apesar da sua simplicidade, é um dos caracteres mais cômicos do autor argentino. Henriqueta, seu gato e Madariaga também aparecem com força poética, como sempre.

Caminhos cruzados (Erico Verissimo)

Erico Verissimo é um cânone da literatura brasileira: muitas publicações, presença nos livros didáticos de língua portuguesa, adaptação para séries e filmes. No entanto, apesar de alguns livros na minha estante (todos ganhados de presente), era um autor do qual nunca tinha lido nada - se não me engano, nem uma única linha. Não consigo definir o que me deixou afastada tanto tempo da escrita do autor sulista, mas é preciso correr atrás do prejuízo. O texto fluente e mordaz de Verissimo me fisgou, e não vejo a hora de ler e conhecer mais do autor. Caminhos cruzados  é uma narrativa com estrutura bastante moderna: personagens diversos são os protagonistas da obra, sem que suas histórias se cruzem necessariamente entre si. Ao optar por apresentar uma miríade de vivências ao leitor, Verissimo oferece um panorama bastante rico da vida em Porto Alegre no início do século XX. A ampla gama de personagens gera identificação ou reconhecimento de caracteres alheios em muitos deles: q