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Mostrando postagens de junho, 2022

San Paolo (Vincenzo Scarpellini)

Agarrei este livro num sebo pensando em uma proposta didática de escrevivência da cidade. O que seria ideia de aula acabou ficando na gaveta, fazendo a leitura sem compromisso ganhar ainda mais em qualidade. Em um acaso, "San Paolo" preencheu duas das minhas buscas recentes em literarura: narrativas curtas e relatos de viagem. Ainda que seja escrito e ilustrado por quem não está só de passagem por Sampa, há um olhar para o novo em cada página. Tem um jeito bonito de contar a cidade e suas dores, cada imagem costurada a um conto de poucas linhas. É a brevidade da poesia para narrar cada história entre a Ipiranga e a São João.

Malas mujeres (María Hesse)

​Para quem está acostumado com a concepção cristã de mundo - em que as mulheres são a origem de todo o mal -, o mote do livro de María Hesse não soa desconhecido. Afinal, a proposta aqui é fazer uma historiografia da maldade feminina... ou, melhor, da maldade de quem alimenta as fogueiras há tanto tempo com a dita carne de bruxa. Comparado com outros livros da autora, "Malas mujeres" não é o meu preferido. Talvez seja porque já conhecia de antemão muitas das histórias contadas, ainda que o traço de Hesse as humanize de forma ainda mais potente.

​Cordéis: Patativa do Assaré

​ Com uma introdução que dá conta dos principais elementos da biografia e da poética de Patativa, o livro traz apenas 5 poemas selecionados. É quase um tira-gosto, já que a apresentação mais aprofundada cria a vontade de conhecermos mais da produção do autor por conta própria. Os poemas tratam da lenda de Aladim, do assassinato de um padre, da imigração, de velas acesas ao diabo e da seca, nessa ordem. O diálogo com outras obras e contextos, como Camões e Castro Alves, se faz evidente em alguns trechos. É uma boa mistura, mas que permite conhecer 5 faces de um poeta com um coração também vasto como o mundo.

Quem me dera ser onda (Manuel Rui)

A narrativa curtinha (uma novela) tem a potência e a poeticidade de seu título. Aliás, o trabalho com a linguagem é um capítulo à parte aqui, já que o autor não domestica seu texto; repleto de expressões típicas, exige um trabalho de constante consulta ao glossário (o que é também uma forma de imersão no contexto). Centrada sobre as desventuras de duas crianças com seu porco de estimação, a narrativa trata da perda da inocência e de como a passagem para o mundo adulto é dolorosa. É também uma alegoria maravilhosa do regime político em Angola após a revolução. Mais que grandes ideais socialistas, a prática política acaba se refestelando no confortável lugar de poder, usando os slogans da luta revolucionária para justificar abusos e intrigas. Nesse contexto, nem o porco escapa de ser taxado de burguês - e de, por isso, merecer a morte. 

Contos de amor rasgados (Marina Colasanti)

É a capa mais feia da minha estante, sem dúvida - e fica como um lembrete de que quem vê cara não vê coração. Depois de uma oficina ruim de minicontos, quis resgatar a leitura desse livro menos conhecido de Marina Colasanti, autora tão renomada da literatura infantojuvenil. Nem todos os textos da coletânea são minicontos, ainda que ocupem no máximo duas páginas. E, de qualquer forma, usar o tamanho para definir o gênero nunca dá em consenso (veja-se a fronteira sempre remarcada da diferença entre conto e novela). O fato é que tamanho não é documento. Se me lembrava desse pequeno conjunto como exemplo máximo de minicontos é porque, mais de uma década depois de minha primeira leitura, o impacto se mantém. Por vezes me remetendo a Black Mirror, por vezes aos labirintos borgianos, os contos de amor rasgam temas que bamboleiam entre a ficção científica e o surrealismo, o romantismo e o sádico, os mitos gregos e os contos de fadas. Para coroar, há a perspectiva feminista e combatente de uma

Rang de Basanti (filme de 2006)

Minha fase de assistir a todos os filmes (que conseguia encontrar por aqui no Brasil, claro) do astro bollywoodiano Aamir Khan foi há uns cinco anos. Aventurei-me também por outras produções indianas na época, mas nenhuma delas me marcou tanto quanto os longas em que o ator, muito reconhecido no país, participa. Talvez por seu prestígio, Aamir tem a chance de opinar na escolha de seus personagens: sempre carismáticos e cativantes, ainda que se trate de assassinos, vingadores, mafiosos e similares. Em "Pinte-me da cor do açafrão" (Rang de Basanti) não é diferente: seu adorável protagonista toma atitudes moralmente condenáveis (por alguns, ao menos). O filme é bastante exagerado nos cenários, nas atuações, nas danças típicas e até em efeitos especiais forçados. No entanto, a reviravolta da narrativa culmina em uma história tão boa e tão provocante que é difícil passar indiferente a esta obra. São vários os problemas na estrutura do longa; contudo, o principal, que é construir u

O rei leão (filme de 2019)

Tenho vontade de rever "O rei leão" desde que soube se tratar de uma releitura de Hamlet. Isso de saber um novo olhar para aquilo que já conhecemos é impactante - é impossível retirar a camada de significados, limpar nossa opinião do que agora a antecede. Não deu para não reconhecer Shakespeare. E não deu para não problematizar racismo, machismo e heteronormatividade. Depois de uma aula da Heloisa Pires Lima (autora de "Histórias da preta") sobre estereótipos étnicos, o contraste entre Mufasa/Simba (leões de pelagem clara e másculos) e Scar (com pelagem escura e trejeitos afeminados) ficou gritante. É uma oposição muito forte entre o branco bom e o escuro (que é mau ou serviçal). Para não falar da ideia de governante predestinado e das fêmeas passivas. A parte gráfica é impressionante, mas não dá para esconder o simbolismo que carrega.

O fabuloso destino de Amélie Poulain (filme de 2001)

​ Assisti a Amélie Poulain pela primeira vez quando tinha quase a idade da protagonista - e, ainda que houvesse amado a obra, o passar dos anos me fez desconfiar do quanto ela sobreviveria ao tempo. De todos os múltiplos elementos que compõem o longa, do que mais me lembrava era do aspecto de comédia romântica. Assim, passou a me incomodar a possibilidade de que, reassistida, a produção não sobrevivesse ao meu juízo crítico atual - mais exigente, chato, menos propenso à imaginação. Para a minha sorte, contudo, Amélie Poulain não só resistiu, mas cresceu como filme. Ao revê-lo cerca de dez anos depois, pude perceber muito mais de sua estética e do quanto ela foi inovadora e criou tendência no cinema do século XXI. Para além da forma, a narrativa também é ousada quanto a seu conteúdo; ainda que recorra a traços da comédia romântica, conta com uma protagonista forte e decidida - mesmo que extremamente tímida. O narrador é uma figura bastante interessante no desvelo da trama. Com efeitos d

Os 3 idiotas (filme de 2009)

"Os 3 idiotas" conta a aventura de 2 amigos que saem em busca de Rancho, um ex-colega de escola. Durante o enredo, a história de amizade dos 3 idiotas é reconstruída através de flasbacks, e aos poucos vamos entendendo o motivo da procura de Rancho, personagem incrivelmente cativante. Difícil rotular este filme como comédia ou qualquer outro gênero.  Assim como a vida, os filmes dirigidos por Aamir Khan são multifacetados: passamos do riso ao choro durante uma mesma cena. Na mistura de gêneros em uma mesma obra, contamos também com a participação de pequenos clipes musicais, que são bem construídos e intrinsecamente relacionados não só ao enredo principal como à própria cultura indiana.  Colorido, agradável, triste, profundo, leve, divertido, emocionante - todos esses adjetivos se aplicam à obra, que consegue agradar mantendo suas características próprias. O cinema de Bollywood surpreende pela sua qualidade e por sua resistência a ser apenas uma cópia oriental do cinema norte-

Um conto chinês (filme de 2011)

A situação absurda nos faz esquecer do aviso ao início: "baseado em fatos reais". Existe lógica para a vida? Para o protagonista desta trama, interpretado pelo sempre maravilhoso Ricardo Darín, não. Ainda que esse personagem se esmere em cumprir pontualmente a sua rotina, sua crença é de que a vida é um turbilhão sem sentido, som e fúria significando nada... Do encontro do chinês atingido pela vaca voadora com o argentino pontual e quase-niilista resulta uma amizade surpreendente e bastante divertida. Não se assustem com a falta de legendas para os diálogos em mandarim: o objetivo do filme é justamente focar o lado incompreensível das relações humanas.   Humor fino, discussão das relações humanas, alfinetadas em preconceitos, atuações maravilhosas e uma vaca muito carismática. Um filme diferentemente bom.

O limite infinito (filme de 2020)

Como quase todo filme de superação, parte da ideia de que "se ele pode, você também pode". Apesar da problemática em comparar situações diferentes de vida (principalmente por ignorar o confortável poder aquisitivo de seu protagonista), não deixa de ser por isso que assistimos a obras assim: para dar uma boa chacoalhada nas certezas de nossas impossibilidades. A história do paratleta traz questionamentos incômodos sobre deficiência, que vão desde a noção de coitadinho até como a ajuda constante também pode ser um problema. Outro ponto que surpreende é ver como, mesmo com o melhor dos treinamentos, por vezes o corpo não aguenta... força de vontade não é só uma questão mental, no fim das contas. 

Memórias de um assassino (filme de 2003)

Eu ainda me lembrava deste filme, especialmente do final. Mas não teve jeito: mal acabou, já fui procurar (de novo) mais informações para tentar dar um sentido ao quebra-cabeça maravilhoso que esta pbra apresenta. Sei que agora achei tudo ainda mais incômodo. O início tem algo da primeira versão de "Tropa de elite", com a violência policial direcionada aos mais impotentes. Além disso, ver um corpo após o outro de mulher violentada despencar na mesa de autópsia é brutal. Mais do que um incômodo, portanto: o que se apresenta nas telas é crueldade. E a guerra e a ditadura também são cruéis, os coreanos bem o sabem. O estupro e casos de crimes reais não resolvidos, idem. Por trás do verniz de uma polícia violenta e incompetente, há a alegoria do regime político e a história do homem bom naturalmente corrompido pela sociedade. Vale a pena controlar a repulsa e atravessar o enredo -  até chegar até um dos melhores finais do cinema.

Fuga (filme de 2006)

Gostei de tantas coisas neste filme: idas e vindas no tempo, fluxo narrativo esquisito (mas não hermético), fotografia quase surrealista, frases certeiras em diálogos, um enredo todo muito bem amarrado (ainda que nem tudo se explique). Por meio da história de uma sinfonia, vários temas relacionados à arte vêm à tona: autoria e plágio, inspiração e prática, pesquisa e apropriação, a violência intrínseca ao trabalho do artista. Além disso, a opressão e a barbárie manicomial também são pautas importantes aqui. Algumas cenas me lembraram um pouco da ideia de "O cisne negro", já que também há um clima soturno e uma espécie de maldição ligada à apresentação da sinfonia. É a arte como perdição e como única fuga possível.