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Mostrando postagens de fevereiro, 2019

No portal da eternidade (filme de 2018)

Van Gogh não é um tema novo para o cinema; apenas no intervalo entre 2017 e 2018 tivemos dois longas excelentes sobre o pintor, ambos retratando o mesmo período de sua vida.  Qual é o sentido, portanto, de assistir a "No portal da eternidade" se "Com amor, Van Gogh" já era uma obra de arte tão completa e estonteante?  Porque, como tema e como artista, Van Gogh nunca se esgota. Ainda que o recorte histórico de ambos os filmes seja o mesmo, são imersões únicas (que tão bem se complementam).  "No portal da eternidade" conta com a atuação de Willem Dafoe, que se mostra uma excelente opção para o papel. A interpretação é tão absolutamente verossímil que nos faz esquecer que o ator de 63 anos interpreta Van Gogh com 37.  A fotografia do filme é espetacular, e busca reproduzir o olhar do pintor holandês sobre a realidade. Com cenas lindas de desfoque, preto e branco, estouros de luz, é uma obra que desafia as convenções da imagem (em um diálogo direto com a i

O coração é um caçador solitário (Carson McCullers)

Primeiro livro de uma escritora de 23 anos, que até então havia se dedicado prioritariamente ao estudo da música, "O coração é um caçador solitário" me conquistou aos poucos. Durante as primeiras 50 páginas, a escrita de McCullers me pareceu repetitiva, óbvia, desprovida de estilo. A impressão inicial é a de estar diante de um livro feito sob medida, resultado de algum curso de iniciante a escritores. Se o começo não convence, aos poucos as personagens vão ganhando força e criando relações de interdependência que são muito interessantes. Enquanto a obra se centra em seu protagonista, pouco tem a oferecer ao leitor; no entanto, com o aparecimento das figuras secundárias, a história consegue se expandir de maneira surpreendente. O livro trabalha consciência de classe, relações de dominação, o contexto histórico de um Estados Unidos racista e retrógrado. No entanto, acima de todas essas discussões, há um debate mais urgente sobre nossa essência de seres solitários. Como em u

Highlands (filme de 2017)

Guilherme Cavallari se tornou uma das minhas inspirações de viagem após ler o incrível "Transpatagônia: pumas não comem ciclistas" e assistir ao filme homônimo. Mochileiro experiente, que fez das trilhas a sua profissão, o autor tem uma visão bastante filosófica e reflexiva sobre o desbravar de novas terras. Inserido em um meio no qual os relatos ora pecam pela exaltação da experiência, ora falham pelo tom de "lição de vida", a escrita de Cavallari consegue alcançar um meio-termo de bom tom e bastante equilíbrio. Aliás, escrita e olhar - no caso de Highlands, fiz o percurso inverso e primeiro assisti ao filme. Obra curta, feita com equipamentos simples, ainda assim é permeada de boas reflexões e curiosidades sobre a viagem. Além do mais, saber das possibilidades que a Escócia oferece em paisagens também é uma boa pedida.

Verões felizes v. 3 (Zidrou & Jordi Lafebre)

Neste volume sobre as férias da família Faldérault, acompanhamos períodos bastante distanciados na linha do tempo: uma das primeiras viagens da família (com a companhia dos sogros) e a venda do carro, muitos anos depois. Não é uma obra tão forte quando comparada aos volumes anteriores, mas consegue manter bem o ritmo da história: novamente, o traço lindo dos quadrinistas é permeado por humor e nostalgia.

Julieta (filme de 2016)

Ao assistir a "Julieta" apenas com o desejo de revitalizar minha lista de filmes de Almodóvar, não foi sem surpresa que reconheci, na trama, o enredo de contos do livro "A fugitiva", da canadense Alice Munro. E para aumentar a satisfação, os contos em que o diretor espanhol se baseia são justamente os que mais me encantaram no volume lido. Com personagens devastados por segredos do passado (uma característica bem cara a Almodóvar), a trama é permeada por flashbacks  enigmáticos, que pouco explicam ao espectador. É apenas conforme o filme vai avançando que conseguimos juntar as peças que dão o encadeamento a narrativa, pontilhada de pequenas tragédias pessoais. O mais interessante no recorte proposto pelo diretor são os jogos de espelhamentos. Em uma relação que talvez não tenha sido tão clara para mim durante a leitura dos contos, há uma série de duplos e de repetições ao longo da narrativa. As histórias são, de certa forma, cíclicas, com um desenlace já previst

O sofista (Platão)

Neste diálogo platônico, sob a orientação de Sócrates alguns pensadores da época iniciam uma reflexão acalorada com um objetivo bastante definido: desmascarar os sofistas. Ainda que hoje nossa visão histórica reconheça a importância dos sofistas para o desenvolvimento do raciocínio na Antiguidade grega, não era esta a visão predominante entre seus contemporâneos filósofos. A grande problemática que se coloca para os homens envolvidos neste diálogo é como provar, argumentativamente, que os sofistas não podem ser considerados filósofos. Como os sofistas trabalham justamente pela perversão de argumentos puros, é preciso uma análise cuidadosa para, ao definir estas personagens e seus métodos, não se cair igualmente em sofismas. Ao lado da discussão sobre o que é ser sofista, encaminha-se paralelamente um debate sobre o ser e o não ser. Com uma abordagem assim ampla, não é de estranhar que hoje essas reflexões soem bastante confusas, gerando um grande estranhamento no leitor contempo

Adolf v. 1 (Osamu Tezuka)

Osamu Tezuka é uma ótima indicação para quem quer entrar nos mundos dos quadrinhos (ou mesmo para quem não quer, com aquela resistência esnobista de quem crê que pode o suficiente para definir o que é ou não cultura/literatura/uma boa narrativa). O autor foi uma das minhas mais marcantes iniciações no universo das histórias em quadros, e não deixa de me surpreender a cada obra nova que descubro. "Adolf", sequência de 5 mangás esgotadíssima no Brasil, se passa no contexto da Segunda Guerra Mundial, entre a Alemanha e o Japão. São 3 personagens homônimas que protagonizam a narrativa: um judeu alemão, um japonês e o (infelizmente) renomado Adolf Hitler. Na trama construída por Tezuka, a vida desses Adolfs se toca de forma misteriosa e trágica. O primeiro volume da saga é extremamente bem construído, criando expectativa e curiosidade no leitor. Ao longo das mais de 200 páginas iniciais da narrativa, participamos de um cenário repleto de personagens profundas (mesmo que 2 dos

Frankenstein in Baghdad (Ahmed Saadawi)

Meu primeiro contato com literatura iraquiana, "Frankenstein in Baghdad" tem uma das premissas mais incríveis com que já tive contato: o mote da história é contar como um mascate, desejoso de dar um enterro digno aos corpos estilhaçados encontrados aos montes durante a invasão do Iraque pelos EUA, constrói um Frankenstein - que, curiosamente, ganha vida. O boneco de carne pútrida que estrela a obra nasce sem saber quais seus objetivos, razões, o porquê de ter voltado à vida. Alegoria tremenda da guerra, nos faz confrontar seus mais escusos motivos: é uma busca por justiça? Um confronto entre ideologias e religiões distintas? A busca de poder e dominação sobre a maioria do povo de um país? Ainda que se perca um pouco na criação de um número ostensivo de personagens e narrativas paralelas, o livro vale muito pelo seu viés reflexivo e pelo contato que nos proporciona com o outro lado da guerra, o qual nunca escutamos - o dos vencidos. Além do mais, o final aberto (e incr

Verões felizes: a Calanque (Zidrou e Jordi Lafebre)

A saga dos "Verões felizes" da família Faldérault  é um dos quadrinhos mais deliciosos que li nos últimos tempos. A grande sacada do roteirista da série foi contar as histórias de viagem de seus personagens fora de ordem cronológica - assim, enquanto no primeiro volume temos um clima de tensão (pela iminente separação do casal de pais), no segundo volume voltamos no tempo, rumo a um passeio despretensioso e absolutamente feliz por uma praia deserta da Europa. Com apenas retoques leves (e ambíguos) de desentendimento entre os personagens, a história do segundo volume cria uma remissão muito interessante ao primeiro. Assim, podemos ver com mais clareza a beleza da família que está prestes a se desfazer enquanto iniciamos a leitura da obra inicial da (até então) trilogia. Livro imperdível para quem gosta de boas narrativas em quadrinhos, despretensiosas (e, surpreendentemente, profundas e reflexivas).

Green Book (filme de 2018)

Em um contexto de amplo debate cultural (quando não guerra cultural) sobre minorias, direitos, ascensão do conservadorismo e perda de direitos fundamentais, é preciso admitir que Green Book   não é um filme revolucionário - e talvez, justamente por isso, funcione. Basta uma rápida olhada no IMDb para perceber que sua nota (quase 1 ponto maior que a do excelente "Infiltrado na Klan") revela o quanto talvez ainda precisamos de um discurso de mais compreensão, tolerância e diálogo antes de darmos os próximos passos no estabelecimento de políticas efetivas de acolhimento. Estes são tempos de retrocesso, impotência, imobilidade - nesse contexto sombrio, um longa que pregue alguma tolerância possível talvez seja ao que tenhamos de nos agarrar. Expostas as limitações identitárias da obra, é preciso ressaltar que trata-se de um conjunto muito bem construído e articulado. Além de ser inspirado em uma história real (o que traz sempre o alívio de que mudanças são possíveis não só na

Corpo fechado (filme de 2000)

Provavelmente sem saber que este filme era o primeiro de uma trilogia, o tradutor do título  "Unbreakable" optou pela má escolha de "Corpo fechado" (expressão muito vinculada, no Brasil, à ideia de feitiçaria - o que vai de encontro ao objetivo central do enredo). Além disso, ao optar por uma tradução mais criativa, não foi criada liga com os dois títulos posteriores da trilogia - "Split" e "Glass" - que, assim como o primeiro, também tratam de personagens fragmentados, quebrados pela vida, enfermiços. O filme inicial da trilogia de Shyamalan, encerrada apenas 19 anos depois, já traz alguns dos elementos principais do desfecho da saga. Nele, somos apresentados tanto a Mr. Glass quanto a David Dunn, que representam, respectivamente, os polos opostos da fragilidade física e da resistência a toda e qualquer doença. Com um peso maior para o personagem representado por Bruce Willis, o longa tem o caráter soturno que caracteriza a interpretação do

Sagarana (Guimarães Rosa)

Virei leitora de Rosa antes ainda da obrigatoriedade de Sagarana no vestibular (livro que continua na lista, mais de dez anos depois de ter prestado a prova). E, ao contrário de tantas obras lidas na adolescência que se tornaram mais claras para mim com o passar do tempo, os textos roseanos ainda são pequenos mistérios, carregados de possibilidades que ainda não desvendei. Lembro-me de, aos 16, 17 anos, ter gostado muito do conto "Conversa de bois", um dos últimos do livro. Ainda que pelo seu tom fabulesco e plot twist sensacional continue sendo uma das minhas narrativas preferidas, na penúltima releitura duas outras vieram somar-se à minha lista de idiossincrasias: "Sarapalha" e "A hora e a vez de Augusto Matraga". "Sarapalha", conto de pouca ação, é extremamente delicado ao lidar com o tema da morte, da solidão e da necessidade de perdoarmos uns aos outros. Para mim, talvez seja o conto mais triste e comovente do conjunto. "A hora e

Antología mayor (Nicolás Guillén)

Poeta da Revolução Cubana, Nicolás Guillén canta os temas que a motivaram: a exploração pelos Estados Unidos, a opressão do trabalhador, o racismo, a violência. Sem restringir-se à sua terra, também acompanhou de perto o movimento social do México, a Guerra Civil Espanhola, dentre outras diversas viagens com cunho ideológico que realizou - sempre criticando a situação colonial e a falta de liberdade. Além dessas mesclas culturais, como poeta negro não deixa de cantar sua ancestralidade. Principalmente nos livros do início de sua carreira, trabalha dialetos e expressões que remetem de forma imediata às suas raízes africanas. Os poemas escritos no período anterior à Revolução, prenhes de utopia, são bastante interessantes do ponto de vista histórico. Já aqueles escritos após a implantação do regime de Fidel Castro, quase sempre isentos de questionamentos mais profundos, não conseguem atender ao leitor mais exigente. Afinal, um poeta que se destacou pelo viés crítico acaba desenvolven

Vidro (filme de 2019)

Fim da trilogia iniciada em 2000, com "Unbreakable", este filme reúne 3 protagonistas com graves transtornos de personalidade e problemas identitários - os outros dois títulos da trilogia, "Split" e "Glass", deixam bem clara esta característica. Trata-se de figuras estilhaçadas, retalhadas pela dor e pelo sofrimento e que, ainda assim, parecem destacar-se como mais resistentes que os demais. O filme dialoga bastante com o gênero das histórias em quadrinhos, criando uma interpretação interessante para ele. Além do mais, ao reler a função e os arquétipos dos super-heróis, cria um questionamento que vale para grande parte dos filmes de ação que são feitos hoje (sempre com os mesmos conflitos e, no mais das vezes, com desenvolvimento e finais absolutamente previsíveis). Talvez o melhor da trilogia, é um longa que consegue unir histórias aparentemente desconectadas entre si (no que se refere aos dois filmes iniciais da saga), sem deixar de ser interessante