Pular para o conteúdo principal

Julieta (filme de 2016)

Ao assistir a "Julieta" apenas com o desejo de revitalizar minha lista de filmes de Almodóvar, não foi sem surpresa que reconheci, na trama, o enredo de contos do livro "A fugitiva", da canadense Alice Munro. E para aumentar a satisfação, os contos em que o diretor espanhol se baseia são justamente os que mais me encantaram no volume lido.

Com personagens devastados por segredos do passado (uma característica bem cara a Almodóvar), a trama é permeada por flashbacks enigmáticos, que pouco explicam ao espectador. É apenas conforme o filme vai avançando que conseguimos juntar as peças que dão o encadeamento a narrativa, pontilhada de pequenas tragédias pessoais.

O mais interessante no recorte proposto pelo diretor são os jogos de espelhamentos. Em uma relação que talvez não tenha sido tão clara para mim durante a leitura dos contos, há uma série de duplos e de repetições ao longo da narrativa. As histórias são, de certa forma, cíclicas, com um desenlace já previsto (e do qual não se pode fugir, como em toda boa tragédia grega). Ainda que não componha a melhor produção de Almódovar, é uma leitura interessante (principalmente para quem se interessa pelas obras de Munro).


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se