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Mostrando postagens de julho, 2020

O último voo das borboletas (Kan Takahama)

Talvez o gênero mangá peça, naturalmente, por sequências mais longas e tramas romanescas. Quando se reduzem a um único volume, ao menos para mim, a experiência dificilmente é arrebatadora.  "O último voo das borboletas" traz várias características bem pensadas: o traço mistura aspectos usuais do gênero enquanto dialoga com as graphic novels; as cenas de fundo são quase tão interessantes quanto a história em primeiro plano, revelando quadros de um Japão prestes a se ocidentalizar; a narrativa é bem amarrada, sem deixar pontas soltas ou conflitos não resolvidos. Ainda assim, não é uma leitura imperdível. O que mais me cativou no mangá foi o trabalho editorial; o contexto histórico que a tradutora aproxima do leitor, por meio de um glossário muito pertinente, é um dos pontos de maior destaque na publicação.

Cotidianas (Mario Benedetti)

Ainda que 2020 pareça ter entrado em uma espécie de loop, em que todos os dias se repetem com tragédias em doses semelhantes, o fato é que o tempo continua seu usual fluxo. E agora, quando mais da metade do ano se passou, já consigo ter um panorama prévio do que significará rever esse tempo em retrospectiva. No campo das leituras, foi uma época de descobertas de muitos poetas favoritos. Após o chileno Nicanor Parra, outra voz latina veio somar-se à minha lista de autores mais queridos. Com um tom bem diferente do de Parra (menos irônico, mais político), Mario Benedetti me arrebatou igualmente.  Talvez a escolha do livro tenha sido certeira, em um tempo em que os dias se fazem iguais no mesmo ambiente. Em "Cotidianas", o uruguaio resgata os pequenos prazeres e vicissitudes que constroem o dia a dia de uma vida. Não são grandes os gestos exaltados, mas tampouco é uma poesia que exalta o insignificante (como a de Manoel de Barros). A poética de Benedetti se aproxima mais a uma l

Lorena, la de pies ligeros (filme de 2019)

Desde o "Do que eu falo quando falo de corrida", de Murakami, virei fã de obras diversas que abordam o tema – paixão que só aumentou quando eu, de fato, comecei a correr. Este curto documentário é um excelente modo de retratar o que torna este esporte único: o deslocar-se que permite o encontro com próprio interior, a prática que só exige um corpo, o cansaço que é compensado pela experiência e pela contemplação. No entanto, não é um filme que caia em clichês – até por sua retratada principal não o permitir. Lorena, a corredora camponesa que usa sandálias simples nas competições, não é dada a grandes discursos. Suas poucas falas registradas durante o filme revelam o quanto tem consciência da efemeridade da exposição pública e de que não precisa se submeter ao que é padrão (como calçar um tênis).  Minha única restrição à obra é que não deve ser vista por meritocratas, já que entenderão tudo errado – afinal, vivem de interpretar o mundo segundo seus próprios interesses escusos.

Antón Chejov (Natalia Ginzburg)

Talvez esta seja a junção mais inusual dos meus prováveis dois escritores favoritos: o russo Tchékhov biografado pela italiana Ginzburg. Uma das características (presente em ambos) que me encanta nas obras também ocorre aqui: a linguagem direta, de quem diz muito sem, aparentemente, entregar nada. Livrinho curto, é um bom panorama da vida e produção do russo. No entanto, Natalia oferta uma versão mais romantizada da história de Tchékhov (que é apresentada de forma mais abrangente na excelente biografia de Janet Malcolm). De qualquer forma, são dois autores fantásticos reunidos em uma só obra.

The Illustrated Compendium of the Amazing Animal Facts (Mäja Säfstrom)

Ainda que despretensioso, é um livro que é uma delícia de entretenimento para quem ama a natureza. A artista reúne alguns fatos bastante curiosos sobre o mundo animal e emoldura cada um deles em uma página ricamente ilustrada. A seleção de informações é bastante instigante. Meu único porém em relação à obra foi o fato de não apresentar uma bibliografia que comprove de onde foram extraídas as informações veiculadas. Em tempos de fake news, ser bem referenciado é um requisito necessário.

100 coisas que todo corredor deveria saber (Sérgio Rocha)

Livro sucinto e de linguagem bastante clara, não é uma obra que impacta por reformular concepções prévias sobre a corrida. É mais como uma pequena enciclopédia para leigos, útil para ser consultada pelos iniciantes no esporte. Para completar os 100 itens enunciados no título, há informações de pouca utilidade - como um item sobre como lavar a roupa, o que me parece um pressuposto um tanto óbvio. Ainda assim, é uma coletânea de informações vasta e bem fundamentada.

La carne de René (Virgilio Piñera)

Ao aplicar as tags do blog para este post, acabo por descobrir que este é o primeiro livro cubano que leio em, pelo menos, oito anos. Por estar estudando tradução do espanhol com foco em autores de Cuba, a literatura da ilha tem despertado meu interesse nos últimos meses.  A redescoberta do que se escreve por lá, contudo, passa longe de ser uma experiência reconfortante; dentre os muitos traços que dão vida à escrita cubana, há o do incômodo proposital, a tentativa de tirar o leitor de sua zona de conforto. Sob esse viés, poucos livros poderiam ser mais representativos que "La carne de René". Talvez surrealista, quem sabe grotesco ou mesmo dadaísta, o romance é uma loucura que faz sentido. Na trama, alguns aspectos bizarros (como o culto à carne dilacerada) e outros cômicos (como a missão transcendental de defender o chocolate nunca consumido) se unem em uma alegoria estranha, mas crível, da sociedade. Se nada faz muito sentido na obra, que termina com final aberto, por outro

Sob o solo (Bianca Pinheiro e Greg Stella)

Um dos aspectos cruciais da novela gráfica, como o próprio nome indica, é o traço do ilustrador. A narrativa se desenvolve em dois eixos simultâneos (visual e verbal), que devem se unir para contar uma história. Assim, é comum que em HQs não tão bem planejadas um aspecto se sobreponha ao outro ou que ambos não conversem muito entre si. "Sob o solo" pode dar a impressão inicial de uma obra em que o verbal seja mais importante do que o traço – afinal, quase todos os quadros das cenas consistem em alguns bonequinhos-palitos dialogando. No entanto, é com muito trabalho que os autores chegaram à simplicidade proposta nas páginas. Tal como muito fica oculto no desenho de um boneco-palito (os traços simples não dão conta das características e complexidades da personalidade retratada), também nas falas entrecortadas dos personagens muito não se diz. É nas entrelinhas da ilustração e das poucas falas que vamos construindo as possibilidades de interpretação dessa história, que são múlt

Paixões (Rosa Montero)

Antes de se tornar uma escritora mundialmente conhecida, Rosa Montero trabalhou por muitos anos no jornalismo. Assim, não é difícil encontrar obras suas que carreguem o olhar do curioso, daquele que procura uma boa história para contar.   “Paixões” é um desses livros – cujo objetivo é narrar alguns dos casos de amor mais complicados (ou interessantes da história). Ainda que a seleção seja boa, os vinte anos que me separam de sua publicação já não permitem um olhar tão bondoso para com a escrita de Rosa.   Principalmente na descrição das mulheres, a autora pesa a mão. O resultado é um livro desigual, que não julga os homens com o mesmo peso e medida de suas companheiras amorosas. Algumas descrições também escorregam no gordofóbico, no estereotipado, nas soluções fáceis. É um livro de entretenimento, mas nem sempre vende bem a ideia que pretende passar.  

El ángel (filme de 2018)

O filme conta a história real de um jovem assassino e ladrão argentino – que ficou famoso, à época, por sua pouca idade e traços angelicais. A proposta da obra acaba sendo, portanto, trabalhar esse contraste entre a inocência que se perde e uma violência que se afirma fortemente. O ator escolhido para protagonizar o anjo – Lorenzo Ferro – tem traços muito semelhantes ao do delinquente real, o que torna a história bastante crível. Com uma trilha sonora bem escolhida, fotografia ótima e atuações convincentes, é uma obra que consegue tornar uma biografia corrompida em obra de arte.

Todos os nossos ontens (Natalia Ginzburg)

Natalia Ginzburg se tornou uma de minhas escritoras favoritas, mesmo que tivesse conhecido apenas uma obra dela até então ("Léxico familiar"). Assim como Tchekhov, que me fisgou de primeira, a autora tem uma capacidade de síntese acachapante. Talvez o ambiente descrito, com suas muitas arengas e sutilezas familiares, também tenha sido um elemento forte de identificação.   Se a beleza de "Léxico familiar" passa pela construção de um vocabulário íntimo, de um glossário a que os poucos membros de uma mesma família têm acesso, a força de "Todos os nossos ontens" vai ainda além. Natalia consegue descrever a passagem do tempo e fatos históricos, como a II Guerra, como se nada de grave estivesse realmente acontecendo.    Sua escrita centra-se na rotina: falas que os personagens constantemente repetem, ações que os constroem enquanto seres dúbios e falhos. E, ainda assim, é nesse cotidiano cinzento (sem glórias, sem salvas aos pequenos heróis) que a vida se fa