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Mostrando postagens de dezembro, 2021

Frankenstein (Junji Ito)

Apesar de intitulado apenas Frankenstein , o volume traz duas obras bastante distintas: uma coletânea de contos de horror que tem como protagonistas alunos adolescentes e a adaptação propriamente dita da obra de Mary Shelley. Ao final, ainda há duas historinhas curtas sobre a cachorrinha maltês do autor, que não chegam a ser assustadoras, mas trazem o estilo característico do mangaka. Quanto à primeira coletânea de histórias, demorei a perceber que se tratava de um mesmo núcleo de personagens, uma vez que cada uma narra uma aventura bastante distinta da outra. No entanto, o próprio mangá oferece uma explicação verossímil para essa realidade paralela – da qual algumas versões são mais interessantes que as outras. A adaptação de Frankenstein , por sua vez, tem o mérito de recriar o monstro de forma realmente assustadora. Não há economia nas cenas que mostram Victor Frankenstein em cemitérios e serrando corpos para elaborar sua criatura. Além disso, outro ponto interessante é o de ser um

Frankenstein (Taisa Borges)

A adaptação brasileira para os quadrinhos do clássico Frankenstein estampa na capa uma figura cubista, com traços desiguais. E esse é realmente a grande sacada da artista Taisa Borges na elaboração da obra: assim como o monstro que é feito de partes diversas do corpo humano, o quadrinho tem um estilo diferente a cada virada de página. Se começamos com uma capa cubista, no miolo identificamos figuras que relembram Mondriani, o gótico, a arte naïf . Há uma oscilação ampla entre os estilos, mas sem perder o fio condutor da narrativa. 

Os monólogos da vagina (Eve Ensler)

Publicado em 1996, Os monólogos da vagina é extremamente atual. Não há discrepâncias aparentes entre o que era reivindicado então e as pautas feministas mais contemporâneas. Além disso, na edição comemorativa, temos acesso a textos extras escritos posteriormente, e que lidam com temas ainda mais pungentes em nossa época. O miolo em si, a parte que corresponde a seu lançamento original, foi a que mais me surpreendeu. A vontade que dá é de ler a peça em voz alta, proclamar suas falas para quem ainda se recusa a ouvir. Contudo, a sequência de textos da edição comemorativa cansa um pouco. Imagino que se trate de uma coletânea de várias intervenções feitas posteriormente, mas que não são encenadas em uma mesma noite na apresentação teatral. Por terem um estilo bastante parecido, criam a impressão de um poema demasiadamente longo quando lidas de forma encavalada.

Olympe de Gouges (Catel & Bocquet)

Olympe de Gouges é uma figura instigante para estudar não apenas as origens do feminismo, mas também a própria história da França. Sempre que revejo os conflitos sociais que levaram à queda da Bastilha, não posso deixar de comparar com a situação atual do Brasil – por aqui, só não parecem terem chegado ainda as guilhotinas, mas talvez porque nosso estado tenha métodos mais eficazes de genocídio, como a fome. Assim, mesmo que se passe há alguns séculos, tanto a história como a personalidade retratadas são extremamente atuais. O quadrinho apresenta alguns dos textos mais famosos de Gouges, permitindo àquele que nunca a leu começar a desvendar os mistérios de sua escrita.

O céu da meia-noite (Lily Brooks-Dalton)

Quando se assina um clube literário que se intitula como "Curadoria", o mínimo que se espera é um cuidado na seleção das obras que serão enviadas a seus afiliados. Não fossem outros livros muito bons que recebi ao longo do ano, O céu da meia-noite  seria o álibi excelente para encerrar o contrato com a TAG. Que ideia péssima que tiveram ao selecionar esse arremedo de romance. Confesso que mal o li; comecei a passar pelas páginas para ver se minhas antecipações estavam certas. Porque é assim que essa narrativa funciona: você lê duas frases, entende todo o resto. Tem pretensão de aventura épica espacial, mas não passa de um clichezão bem terrestre. Sem contar que tudo serve apenas como uma catarse para o protagonista machista, do tipo de pai que mal paga a pensão e vê a filha duas vezes por ano. 

Uma morte horrível (Penélope Bagieu)

Quadrinho divertido, que trabalha tanto aspectos do mundo editorial quanto o cenário e os estereótipos franceses: Uma morte horrível é um livro talvez despretensioso, mas muito eficaz enquanto bom entretenimento. Dei boas risadas com a figura do escritor sorumbático e da protagonista avoada; além disso, algumas cenas têm o tom de Amélie Poulain , levando-nos a passear por Paris de forma graciosa. Entre o thriller  e a comédia, é uma leitura que vale a pena, nem que seja apenas para se deliciar com a reviravolta que marca seu final.

A boa vida segundo Hemingway (A. E. Hotchner)

Pincelada biográfica sobre a vida de Hemingway, o livro é mais uma coleção de aforismos e fotografias do autor. Conhecendo um pouco mais sobre quem ele foi, o efeito que a obra teve em mim provavelmente foi inverso ao pretendido. Sabendo de todos os aspectos que consolidam Hemingway como o estereótipo do americano do século passado, é difícil encontrar motivos que sustentem o interesse em sua produção. Além das frases do autor, o conjunto de fotografias acaba pintando um cenário ainda mais discutível, como as poses do escritor ao lado dos animais abatidos em caçadas. O próprio biógrafo tampouco se apresenta como flor que se cheire, aliás. Em suma, apesar de bem diagramado e com uma proposta interessante, o livro foi uma antipropaganda para mim.

Paula (Isabel Allende)

De Isabel Allende só li textos autobiográficos até agora: comecei por Mi país inventado e, agora, enveredei por Paula . Talvez um certo receio de encontrar uma ficção com muitos elementos sobrenaturais me afaste de conhecer sua obra mais a fundo. No entanto, a escrita envolvente que encontrei nesses dois livros é um convite persuasivo a ler mais da produção da autora chilena. Em Paula , narra-se a dor da mãe que acompanha o definhar da filha. Como Allende declara nas primeiras páginas, o romance é uma tentativa de manter Paula viva; uma espécie de opção desesperada de segurar o fio da existência pela narrativa, tal como a mulher do sultão nas 1001 noites .  Entremeada à tentativa de entender o que significou a vida da filha, a escritora tece também a própria história: acompanhamos ao longo das páginas uma autobiografia que abrange desde a meninice até à mãe desesperada pela perda de quem ama. Além dos trechos tocantes que lidam com o luto, há várias reflexões profundas na obra: de qu

Vista chinesa (Tatiana Salem Levy)

Ao adentrar pelas páginas de Vista Chinesa , já conhecendo por antecipação o seu tema, me propus o exercício de relembrar quantos dos livros que já li tratavam do estupro. Repassei, inclusive, algumas das leituras que fiz neste ano, como To Kill a Mockingbird e Ensaio sobre a cegueira . Mas nada do que vira até então constituiu um retrato tão chocante como o proposto por Tatiana Salem Levy. Não é só o pressuposto de ser fundamentado em uma história real. O que dói aqui é ler a perspectiva de uma mulher não calando o que é o nosso medo compartilhado mais profundo. Que mulher no mundo nunca passou por uma situação de assédio? Quem de nós nunca teve esse temor? Talvez a sororidade seja isso, em suma: possuímos um horror ancestral que nos iguala. Finalizada a leitura, as cenas descritas a todo momento voltam à memória. Se eu, como leitora, tenho essa impressão, não é possível sequer imaginar quanto essa brutalidade deve assombrar a pessoa que realmente a viveu. Com pouco mais de 100 página

Gente pequena, gente grande (Stéphanie Vander Meiren / Aurélie Romain)

Páginas que crescem conforme a vida da protagonista se expande: a graça de Gente pequena, gente grande é proporcionar uma experiência bastante sensorial e visual do que significa a passagem dos anos. Enquanto o bebê tem uma filipeta com pouco texto e a ilustração de poucos acessórios, a velhinha de 86 anos precisa de uma página dupla e um acumulado de pertences e contatos feitos ao longo da vida. E, no entanto, assim como o bebê, ela mal se lembra dos acontecimentos anteriores, o que nos leva a questionar o porquê de tanta acumulação... ou mesmo dessa nossa correria. Um livrinho (ou um livrão) sensacional.

Os tradutores (filme de 2019)

São tantos os temas afins a quem está imerso no mundo da editoração, que nem sei por onde começar a enumerar os porquês de ter gostado deste filme. Entre as muitas discussões levantadas, temos: - a falta de reconhecimento do tradutor; - a devoção pela literatura; - a pirataria (retratada como um elemento a ser considerado, não necessariamente como prática criminal); - a baixa remuneração dos tradutores, especialmente quando comparada ao salário de um autor de best seller; - o uso de pseudônimos; - o anonimato; - a figura do livreiro como alguém mais ligado a um mundo já extinto; - os idiomas mais e menos privilegiados, considerando o recorte geopolítico dos países que os falam; - a pesquisa inerente à profissão do tradutor; - existir pelos livros. Todos esses elementos são coloridos pelo matiz de um bom thriller, que cresce aos poucos. Assim como o romance a ser traduzido, o que o filme parece querer mostrar é que, por trás de aparentes estereótipos, podem se esconder elementos mais pr

Não quero usar óculos (Carla Maia de Almeida e Daniel Letria)

Para as crianças que receiam passar a ver o mundo com outras lentes, o livro parece ser uma boa pedida. O que a autora e o ilustrador fazem é tecer possibilidades de modos de enxergar, criando uma situação inusitada a cada hipótese que lançam. Não é o meu tipo preferido de livro para a infância, contudo. Talvez um certo didatismo, talvez a falta de trabalho com os reais motivos que fazem a criança rejeitar o óculos... não tenho certeza, mas algo na obra não me fisgou.

Modern Love (ed. Daniel Jones)

O que me inspirou a buscar este livro foi a série homônima da Amazon, que tem uma primeira temporada excelente (da segunda, só se salva o primeiro episódio). Contudo, foram poucas as histórias que reconheci das adaptações para a televisão: a maioria me foi apresentada com um gosto de novidade boa. Há vários tipos de amor e de retratos humanos nessa antologia, ainda que marcados por um recorte social bastante específico (classe média estadunidense). Longe de uma perspectiva de amor romântico, o que domina na obra são tramas marcadas por encontros e desencontros. E, ao tentar relembrar quais narrativas mais me marcaram, percebo que este também é um livro de perdas. Seja a morte da filha, do marido, da esposa, o amor parece se revelar ainda mais pungente diante da impossibilidade de ser concretizado. Encontramos também riso e surpresa no meio desses causos de amor, como o do pai doador de sêmen que acaba se apaixonando pela mãe de sua filha genética. Rica mistura, é um recorte bonito de n

Normal People (Sally Rooney)

Talvez Normal People tenha sido meu grande page-turner de 2021, além de série que maratonei com mais entusiasmo. Uma parte de mim se incomodou com tanta euforia: afinal, a linguagem despreocupada de Sally Rooney talvez dê um tom quase de guilty pleasure ao leitor literário que embarca em sua narrativa.  No entanto, o livro incomoda. E, em termos literários, isso é um bom sinal. Entre os muitos elementos que nos são comuns na contemporaneidade (as mensagens de texto pelas redes, os diálogos lacônicos, as tardes passadas diante da televisão), a autora consegue pescar cenas que são alegorias pertinentes do que somos, nossa solidão e nossos problemas em nos comunicar. E o mais bonito é como Rooney consegue revestir toda essa mistura com a frágil pátina de uma história de amor confusa, mas preciosa.

Frankenstein (Mary Shelley)

N o prefácio à edição da Penguin, a escritora Elizabeth Kostova narra sua surpresa ao reler o clássico de Mary Shelley - afinal, sua pretensa releitura nada mais era do que o contato inicial com a obra. Clássicos incorporados à mitologia popular têm o poder de criar narrativas prévias à trama inicialmente idealizada por seus escritores. Quando falamos de obras impossíveis de catalogar no que tange às suas releituras e adaptações, as intertextualidades que as antecipam são ainda mais potentes. "Frankenstein", no entanto, é uma obra que não decepciona um leitor que tenha criado altas expectativas sobre a trama original. Pelo contrário: o livro só cresce ao descobrirmos o quanto sua narrativa foge ao senso comum em relação à criatura gerada pelo dr. Frankenstein. Além da confusão habitual que leva a nomear o suposto monstro com o mesmo sobrenome de seu criador, outra surpresa da obra é descobrir o quanto há de mais monstruoso na figura do cientista do que em sua criação. Publica

Sagatrissuinorana (João Luiz Guimarães e Nelson Cruz)

Que porrada. Não consigo pensar em outra forma para definir Saga , ainda que o meu tom despropositado em nada reflita a linguagem profundamente poética desta obra. Desde o título inusitado para um suposto livro para infância, Sagatrissuinorana  é um susto contínuo, uma reviravolta mais potente que a outra. Poucas páginas bastam para nos arrastar para o meio do redamunho. E do meio do pé de vento retornamos ao princípio: uma das muitas belezas, aqui, é a brincadeira entre a atemporalidade dos contos de fadas e as datas marcadas de nossas tragédias, o que foi o início de tudo e o fim que não marca um ponto-final na história.  Voltando ao recomeço, cada releitura de Saga apura nosso olhar para tudo o que o envolve. Não foi à toa que o Jabuti premiou autor e ilustrador pela primeira vez em sua história: afinal, aqui a narrativa se tece a muitas mãos, inclusive as de Guimarães Rosa. 

Viagem ao topo da Terra (filme de 2021)

Jiro Taniguchi é um dos meus mangakas favoritos, mas nunca havia assistido a nenhuma animação baseada em suas histórias. Viagem ao topo da Terra  me trouxe não apenas a contemplação, de que tanto gosto nas obras do autor, mas também o tema das viagens e das trilhas, que me são muito queridos. Ao contrário do que se poderia esperar usualmente de uma produção sobre escalada, este filme não está preocupado em narrar alguma aventura. Há algumas cenas de emoção e intriga, mas o que realmente importa é como se constrói o caminho. Se de um lado temos como protagonista um montanhista profissional, de outro acompanhamos o olhar de um fotógrafo desiludido e curioso. É pelas lentes desse personagem que o espectador também se torna um pouco um espião da trama, tentando entender a bela vida que lhe é retratada.   

A grande aposta (filme de 2015)

Com uma linguagem que oscila entre didática e despojada, A grande aposta tem a virtude de revelar como o sistema capitalista, de que estamos tão seguros, não passa de um jogo. A crise de 2008, que levou milhares de pessoas a serem despejadas de suas casas e iniciou um efeito dominó mundial – derrubando, inclusive, nossa presidente – não só é explicada ao espectador, como se mostra a pequena parcela de investidores que soube fazer do caos uma oportunidade para lucrar ainda mais. As vantagens da obra acabam aí. Talvez algumas outras qualidades pudessem ser elogiadas, como as interpretações, trilha sonora, diálogos... mas há aspectos ideológicos no filme que incomodam mais que sua pretensão em ser um bom retrato da economia mundial. Só 7 anos me distanciam de seu lançamento; contudo, o machismo que lhe dá o tom é bastante retrógrado. As poucas mulheres que aparecem na produção são sensualizadas ou ridicularizadas; quando aparecem em uma posição de poder, até a maternidade é duramente cr

Amnésia (filme de 2000)

O primeiro filme ao qual assisti em 2021 foi Tenet ; quase no final do ano, decidi ver Amnésia , que faz parte da filmografia inicial de Christopher Nolan. Não foi sem uma boa surpresa que percebi temas espelhados em ambas as produções, que retratam a fragilidade inerente a qualquer linha temporal. E ainda mais curioso é como o diretor consegue incorporar esse nó conceitual à sua carreira, com filmes distantes mais de 20 anos entre si, mas que parecem peças de um mesmo quebra-cabeça, sem começo e sem final possíveis. Já havia visto uma adaptação bollywoodiana da trama ( Ghajini ), de que havia gostado bastante. No entanto, a versão indiana concentra-se no drama e na vingança do protagonista; no filme original, o ponto principal é embaralhar tanto os fatos a ponto de o espectador ficar tão confuso e incerto da verdade quanto o personagem principal. Nolan aposta bastante em estruturas cíclicas em suas produções. Por mais que já conheçamos a fórmula, é difícil não se envolver e sair com a

A vida dos outros (filme de 2006)

Poucas figuras são tão caricatas quanto um patriota; basta retratar um pouco de ilusão mal intencionada com o desprezo pelo que é alheio para construir uma forma exagerada, mas verossímil. Ao criar um protagonista cruel que, sem explicações aparentes, decide virar a casaca, A vida dos outros exibe seu grande trunfo. Não esperamos nada do personagem, que nos é apresentado como um cruel investigador da Alemanha oriental. Contudo, um escritor que surge em seu caminho o faz, subitamente, decidir agir contra o sistema. E o mais interessante é que sabemos muito mais do autor que é observado que daquele que o espiona. O que me fez desconfiar da produção, contudo, é um olhar que critica um tipo de patriotismo para exaltar outro. Ao final da obra, a derrocada do muro parece ser o grande divisor de águas de um sistema corrupto, como se o capitalismo viesse montado em um cavalo branco e pronto a defender os oprimidos.

Duna (filme de 2021)

Dennis Villeneuve me conquistou com A Chegada ; assim, não foi sem grandes expectativas que fui assistir a Duna – afinal, trata-se também de uma história que narra contato entre diferentes povos e é igualmente uma adaptação de obra literária. Aliada a uma excelente fotografia, ótimas atuações e bela trilha sonora, a narrativa surpreende nas telas grandes do cinema. É preciso um tempo após a catarse da exibição para pensar em alguns problemas estruturais da obra, como os estereótipos a que todos os personagens não brancos são reduzidos. Contrariamente às grandes produções de aventuras, este é um filme que se propõe sério, sem alívios cômicos. Talvez seja essa melancolia de um fim de mundo próximo do que mais tenha gostado no filme, e que reflita melhor o estado de espírito dos tempos que correm.

Aqueles que queimam livros (George Steiner)

Esta é uma obra que me fisgou pelo título – mas, ao me levar pelas aparências, não pus igual atenção à casa editorial que a publica. Ainda que disponha de obras fundamentais em seu catálogo, a Âyiné é também a responsável por lançar a Biblioteca Antagonista por aqui. Ou seja, ainda que bem fundamentada na escolha de alguns clássicos, a linha teórica com que nos deparamos em seus títulos selecionados é bastante conservadora. O discurso que preza pela educação clássica (e, logicamente, meritocrática) tem sido retomado com ênfase em alguns campos de estudo. E é justamente essa ideia que Steiner defende – sem perceber que invalidar métodos modernos de estudo é também uma forma de queimar livros... ou seus leitores. São vários os temas relacionados à área dos livros ao longo da obra; contudo, o que mais me chamou a atenção e parece percorrer todos os textos que a compõem é a ideia de que existe uma leitura certa e uma leitura errada. E, como boa leitora errada que sou, não quis me atentar a

Um dia, um rio (André Neves e Leo Cunha)

Meu contato com a literatura infantil não se encerrou na infância; há algo do universo do livro ilustrado e do livro para crianças que continuamente me cativou. No entanto, nem sempre tive um bom olhar para percorrer com paciência as páginas dessas publicações – ao reler muitas das minhas resenhas sobre literatura infantojuvenil, reparo na minha pressa ao me defrontar com livros que, apesar do aparente pequeno tamanho, exigem uma atenção concentrada de seu leitor. Um dia, um rio foi uma obra que me emocionou, há dois anos – antes ainda do desastre de Brumadinho. E agora, com um novo caso de rompimento de barragem em Minas, suas palavras ganham um tom quase profético. Não é à toa que o grande vencedor do Jabuti deste ano ( Sagatrissuinorana ) retoma o mesmo tema usando também a linguagem do livro ilustrado. Hoje, meu olhar percorre com mais vagar cada imagem da obra. Vejo as cores a invadirem as páginas, o rio de sangue que se forma aos poucos, o menino soterrado que pede ajuda em sua

Cuidado, escola!

Li recentemente Educação contra a barbárie , obra que é um grito revoltado contra as políticas oficiais de educação sob o desgoverno em que vivemos. Contudo, um dos pontos que me incomodou naquela leitura foi a perspectiva ainda muito tradicional da educação, como se trocar o presidente, mas mantendo o modelo correcional de ensino, resolvesse algo de fato. Nessa perspectiva, Cuidado, escola! é um livro semelhante, mas com uma fundamentação realmente revolucionária. Também escrito contra os desmandos da política de sua época, o livro é assinado por vários intelectuais exilados durante a ditadura, incluindo nosso patrono Paulo Freire. Por meio de uma linguagem bastante acessível e exemplos fáceis, a obra consegue mostrar que é preciso arrancar as raízes que nos prendem a um modelo ultrapassado de ensino-aprendizagem. A fim de ser democrática, a educação precisa dar voz a todos os envolvidos – um dos elementos que não ocorrem em Educação contra a barbárie . Os acadêmicos podem contribuir

Pequena coreografia do adeus (Aline Bei)

O livro de Aline Bei é um "entre": entre poesia e prosa, romance e diário, aforismos e linguagem telegráfica, desabafo e voz presa na garganta. Mas, sobretudo, é um "entre" que é convite a adentrar a obra, que se oferece como casa aberta a quem queira conhecer a intimidade de sua narradora. O tom do livro é quase o de uma postagem em rede social: é fácil se envolver pelo desabafo da narradora; difícil, conseguir se desprender da trama que é construída. A falta de uma linguagem hermética, contudo, é também uma máscara: a narrativa aparenta simplicidade para descrever complexas relações de violência e afeto. Bailarina frustrada, que não sabia dançar, a protagonista do romance nos oferece rodopios em versos quebrados, sem rima, sem métrica. É um convite para observar a beleza da impossibilidade, daquilo que não conseguimos fazer e das dores que nos acompanham a cada passo.  

Educação contra a barbárie

A proposta desta obra, coletânea de diversos artigos de autores distintos, foi a de ser uma voz de levante contra os ataques que a educação vem sofrendo e que são articuladas pelas instituições governamentais que deveriam defendê-la. Só que levantar-se não basta, se não for para destruir as estruturas que nos mantém presos ao mesmo terreno repisado de práticas pouco democráticas na sala de aula. Há alguns pontos que são certeiros no livro; entre eles, a ideia da produção de conteúdo didático de forma compartilhada e livre de direitos autorais, o questionamento dos interesses de grandes empresas e bancos em patrocinar iniciativas educacionais, a importância de não calarmos nossa indignação e ódio em nome das comportadas competências socioemocionais da BNCC e a análise fenomenal de problemas da educação comunitária que bell hooks realiza, no artigo que fecha a obra. No entanto, boa parte dos artigos que compõem a coletânea não me trouxeram nada novo; é como se a proposta de educação idea