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Mostrando postagens de março, 2022

O mistério de Henri Pick (filme de 2019)

Feito na medida para quem é do mundo dos livros, o filme passeia entre o gênero investigativo e o documentário de crítica literária. Seu protagonista, uma espécie de Sherlock amargurado, tem por objetivo descobrir a autoria do mais recente best-seller editorial, atribuído a um pizzaiolo já falecido. Autoria e plágio, jogadas editoriais de marketing, qualidade literária, importância da leitura na formação do escritor, endeusamento dos autores, prazer de ler e de falar sobre o que lemos: são muitos os ingredientes utilizados e, ainda assim, sem perder o ponto de interesse do espectador. Guiado por um protagonista nem um pouco carismático, o enredo consegue prender nossa atenção pela sagacidade das perguntas propostas. Ainda que não conquiste nossa simpatia, o personagem principal é também o único a questionar uma obra que já havia conseguido fixar seu lugar de destaque no mercado literário.

Dezessete (filme de 2019)

Road movie de personagens separados pela vida e unidos na viagem: apesar da trama já ser velha conhecida de outros enredos, a fórmula ainda funciona muito bem em "Dezessete". Demora um pouco para o tema principal do filme ficar claro para o espectador; no entanto, a confusão é proposital, já que vamos descobrindo quem os personagens são ao longo da estrada. Com um tom leve, o enredo me lembrou filmes como "Pequena Miss Sunshine" e "Rain Man". E, tal como eles, é uma obra sem grandes pretensões... e que, por isso, sabe como conquistar seu valor.

Olmo e a gaivota (filme de 2015)

Alguns dos melhores filmes a que assisti neste ano (mais cinéfilo que os anteriores) foram dirigidos por mulheres: "Ataque de cães", "A teta assustada" e, agora, "Olmo e a gaivota". E a condução de uma trama fora de perspectiva usual faz toda a diferença. Dirigido pela brasileira Petra Costa (de "Democracia em vertigem" e "Elena"), o longa-metragem é um retrato intimista e, ao mesmo tempo, abrangente das questões sociais que a maternidade envolve. Tal como "A história da filha perdida", a trama tem um forte apelo anticoncepcional. Ainda que conte a história de uma gravidez por escolha, é difícil não se impactar pelas restrições e falta de liberdade durante o período da gestação. A linguagem cinematográfica de Petra é construída por reminiscências, baús de guardados dos protagonistas postos em cena. Como o casal filmado trabalha no teatro, as fronteiras entre a realidade e a fição / o drama e o documentário são ondulantes, flex

O projeto Adam (filme de 2022)

Com cara de filminho da Sessão da Tarde, o roteiro aposta no humor para esconder as inverossimilhanças que toda história de viagem no tempo traz. É bem visível o esforço de trabalhar alguma representatividade, mas a única personagem negra aparece pouquíssimo no enredo e as personagens mulheres ou são relapsas ou são cientistas más. No fim, mais uma vez são os homens brancos salvando o mundo.

Zambézia (filme de 2012)

Animação sul-africana, conta uma história sobre a importância da união por meio de passarinhos. Para quem gosta de estudar os hábitos das aves, é visível que o enredo  não usa os pássaros apenas como um pretexto. As espécies, bem como o comportamento de cada uma delas, são importantes para todo o desenvolvimento da trama.

O menino que lia cartas (filme de 2019)

Filme sul-africano em que não se fala inglês, dá um panorama do país que amplia nossa concepção sobre as diversas realidades de seus cidadãos. O enredo é bastante semelhante ao de "Central do Brasil", em que a leitura de cartas (feita por um menino) cria uma ponte entre as gerações e esgarça os limites entre o público e o privado.

Poetry for children (Emily Dickinson)

Com vários títulos já publicados, a coleção "Poetry for children" traz uma concepção editorial muito bem pensada: ilustrações lindas, uma seleção de ótimos autores, glossário ao pé da página para palavras desconhecidas dos pequenos e uma paráfrase acessível de cada texto ao final da publicação. Emily Dickinson trabalha vários temas que são (ou deveriam ser) essenciais à literatura infantil: natureza, descoberta do mundo, leitura, vida e morte. Confesso que achei alguns poemas bastante complexos para crianças... ainda assim, a maioria dos textos é composta de versos curtos e que encantam pelas rimas. E pela beleza da linguagem, claro.

Peter and Alice (John Logan)

Fazia tempo que não lia uma peça de teatro. Tinha me esquecido da potência que uma frase bem encaixada, no contexto da cena, pode atingir. Minha vontade imediata, após acabar a leitura enxugando as lágrimas (que texto bonito!) foi procurar em vão por alguma representação teatral. Mesmo sem a possibilidade de ver o texto encenado, a precisão na escrita de John Logan é certeira. Há vários momentos em que as falas vão em uma crescente, que é culminada por percepções brilhantes. E quem são os personagens dessa peça? Alice e Peter Pan, os da história e os de estórias. Quem não sabe que os famosos protagonistas foram inspirados em crianças tem acesso ao contexto durante a encenação - não de modo didático, mas sim instigante. Aliás, pode até ser melhor não conhecer nada sobre o Peter e a Alice reais, já que é na biografia deles que reside a força do encontro imaginário entre dois seres estilhaçados na vida e imortais na ficção.

Robin Robin (curta de 2021)

A animação é bonitinha, com este efeito de espuma nos personagens e uma leve problematização do consumismo. Não é nada imperdível, enfim.

Nomadland (filme de 2020)

Ganhador do Oscar de 2021, "Nomadland" parece a continuação de outro filme a que assisti recentemente ("Sorry, we missed you"), em que um motorista de entregas trabalhava até o sufoco. Em "Nomadland", sequer o trabalho fixo resta: apenas a van para migrar de uma região do país a outra. Ao fazer a protagonista contracenar com figuras reais e não atores, o filme borra as fronteiras entre o documentário e a ficção. E é justamente nesse esgarçamento que reside sua força. Revelar quão frágil é a fronteira entre uma classe média bem acomodada e os milhares de sem-casa (não necessariamente sem-teto) é um papel muito bem cumprido pela produção. Entendo os motivos que levam a trama a, apesar da melancolia, mostrar os bons sentimentos que regem uma comunidade. Contudo, o fato de não haver nenhuma pessoa má no recorte proposto - considerando uma mulher em situação de vulnerabilidade - me pareceu pouco crível.

The Lamb (filme de 2021)

Com um início bem parado, "The Lamb" me causou uma primeira impressão de desconfiança: tive receio de que fosse mais um daqueles filmes premiados no Cannes, sem diálogos e repletos de naturezas-mortas incompreensíveis do cotidiano. Mas o longa está mais para um surrealismo desvairado que para a pasmaceira - o silêncio que marca os minutos iniciais tem um motivo. Aliás, tudo tem um motivo no enredo, ainda que a premissa que o sustenta seja pura carnavalização. É daquelas obras que vale a pena rever desde o princípio após saber como acaba, só para perceber como todas as pontas foram bem amarradas. E o que parece absurdo, além de questionar nossos limites de verossimilhança, resgata conflitos fundamentais que nos constituem enquanto humanos: a civilização e a barbárie, a natureza e a sociedade, o instinto e a racionalização.

Licorice Pizza (filme de 2021)

 ​Dois protagonistas que correm na direção um do outro, mas que raramente se encontram: talvez essa cena (que se repete com alguma insistência, aliás) consiga definir a ideia central de Licorice Pizza. Na trama, um garoto de 15 anos se apaixona por uma mulher de 25/28, que aposta na ambiguidade ao enunciar a idade - provavelmente, para não recair na acusação de pedofilia. Mas há outros problemas, e até mais sérios, já que a passagem do tempo não é muito clara no enredo. A protagonista de quem se espera mais maturidade é quem mais demora a se encontrar, passando de uma relação frustrada a outra e sem fixar raízes em nenhum emprego. O garoto de 15 é empresário e ator, e guia a suposta companheira a encontrar seu rumo enquanto o dele já está consolidado. Somada a uma cena de quase abuso da mulher adormecida, o filme está recheado de momentos incômodos. Como comédia romântica, é um filme passável. Como obra saudosista dos anos 1970, também. Mas não é muito mais do que isso - e passa longe

As aventuras de Pinóquio (Carlo Collodi)

Não é preciso avançar muito na leitura de Pinóquio para perceber que o livro difere muito da versão mais famosa do filme: logo nos primeiros capítulos, o Grilo falante é assassinado a marteladas pelo boneco de madeira, só para citar um exemplo. Enquanto a violência e a falta de caráter de Pinóquio saltam as olhos, talvez o ponto mais importante do enredo passe despercebido: o protagonista não quer ir à escola. Esse é o grande motivo por trás de todas as fugas e má-criações do personagem, assim como a grande crítica proposta pela história. Parece haver uma redenção ao final, quando Pinóquio começa a trabalhar duro para salvar Gepeto e a fada azul - mas essa mudança de perspectiva é uma lição da vida, não do colégio. E é nesse ponto que Carlo Collodi nos engana e fascina: seria tudo uma alegoria para mostrar a importância dos estudos e do trabalho duro... ou uma negação desses valores em nome da liberdade e das experiências? Afinal, para que ser um menino de verdade sem o livre-arbítrio

Martín Fierro (José Hernández)

Se analisar a obra de Monteiro Lobato, que está mais restrita ao âmbito da literatura infantil, já nos é doloroso, imagino quanto não deve ser problemática para os argentinos a figura de Martín Fierro. O herói gaucho não só é um dos símbolos da literatura nacional, mas do próprio conceito de pertencimento à terra. Entre as muitas barbaridades de Fierro, estão violências contra a mulher, o negro e o indígena. Tudo é tingido com as cores da brutalidade, sem espaço para meios-termos. Exemplifico: uma das cenas mais lembradas do poema é o assassinato de um bebê e o uso das tripas para amarrar os braços da mãe. Ainda que Fierro chegue para salvar a personagem, os embates aos quais se propõe são igualmente banhados em sangue. Contudo, não é preciso muito para entender o porquê de o livro ter se tornado clássico: o ritmo dos versos é hipnótico, quase como o dos nossos cordéis. Inclusive, um dos pontos altos da obra é uma disputa em versos ao final, semelhante a um desafio no repente ou de uma

Belfast (filme de 2021)

Entre as categorias não ditas do Oscar, quase sempre estão um filme de rainha, um filme de Segunda Guerra, um filme que homenageia a história do cinema e um filme preto e branco. Belfast se encaixa nessas últimas duas classificações, mas também engloba uma nominação mais: a de filme pretensioso. Querer contar uma história em preto e branco hoje é assumir que a linguagem atual cinematográfica não dá conta da problemática a ser narrada. Contudo, empregar a técnica para compor uma visão maniqueísta, de real preto no branco, é apostar na redundância. E elas não faltam no filme: bem e mal muito definidos, símbolos simplórios, alegorias óbvias. Além de cenas simplesmente ruins: o casal de protagonistas dançando como se estivessem em um high school musical é apenas uma delas.

Anna Kariênina (Tolstói) + Filmes de 1948 e 2012 / Séries de 1977 e 2013

Para um livrão desses, me propus a uma jornada por diferentes versões de Anna. Compartilho um pouco do passeio por aqui: O romance em si: em um calhamaço de tantas páginas, os personagens se tornam companheiros de travessia. Ao longo da narrativa, há altos e baixos – nem todas as partes terão a força da tão famosa frase inicial que abre a trama. Contudo, mesmo nos trechos maçantes, a intencionalidade do autor é bastante clara; difícil é se esquivar ao impacto da escrita de Tolstói nesse romance. Assim como em "Guerra e Paz", o autor escolhe um personagem para ser o porta-voz de seus próprios ideais no enredo, mas isso não leva a um romance panfletário. Pelo contrário: cada personagem é tão bem construído que conseguimos nos identificar mesmo com as posições que Tolstói rejeitava, como o arrependimento de ter tido filhos (Dolly) e a rejeição a um casamento convencional (Anna Kariênina). As partes que mais me tocaram foram aquelas em que a pequenez dos objetos cotidianos se mes