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Quem me dera ser onda (Manuel Rui)

A narrativa curtinha (uma novela) tem a potência e a poeticidade de seu título. Aliás, o trabalho com a linguagem é um capítulo à parte aqui, já que o autor não domestica seu texto; repleto de expressões típicas, exige um trabalho de constante consulta ao glossário (o que é também uma forma de imersão no contexto). Centrada sobre as desventuras de duas crianças com seu porco de estimação, a narrativa trata da perda da inocência e de como a passagem para o mundo adulto é dolorosa.

É também uma alegoria maravilhosa do regime político em Angola após a revolução. Mais que grandes ideais socialistas, a prática política acaba se refestelando no confortável lugar de poder, usando os slogans da luta revolucionária para justificar abusos e intrigas. Nesse contexto, nem o porco escapa de ser taxado de burguês - e de, por isso, merecer a morte. 





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