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Sons: arranjo: garganta (Ricardo Domeneck)

Conheci a obra de Ricardo Domeneck graças à Flip de 2018, na qual pude ver o poeta conversando sobre seu trabalho editorial, performático, lírico. Para quem ingressa desavisado na leitura, seus poemas podem causar grande estranhamento - afinal, é preciso considerar o contexto em que se situa seu autor para uma fruição mais intensa. Ou, ao menos, não tão desconfiada.

Com experimentalismos vários, e citações que vão dos cânones da literatura a Kate Moss, a poética de Domeneck é ampla como o tempo em que está inscrita. Reunidos sob um título que remete tanto à musicalidade quanto à guturalidade, em alguns casos seus poemas são mais instalações sonoras do que propriamente um trabalho com a linguagem. Extrai-se o significado, fica o significante.

Obra para ser interpretada, recitada, lida em voz alta. No contexto do leitor solitário, os poemas murmurados não perdem seu valor, mas igualmente não ganham em força. No limite entre o escrito e o oral, uma poesia que merece a declamação.




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