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Laerte-se (filme de 2017)

O quanto (des)conhecemos sobre as questões de gênero e sexualidade? Na série Merlí (2. temporada), o protagonista, um professor de Filosofia descolado, tenta ser extremamente simpático quando a escola recebe uma outra docente, travesti. No entanto, conforme a história avança, o novo membro do grupo escolar faz que Merlí perceba que o seu entusiasmo é tão preconceituoso e cheio de tabus quanto o olhar malicioso dos demais colegas. É disso que falamos quando falamos de gêneros: enquanto determinadas questões não forem naturalizadas, incorporadas, tratadas com o mesmo olhar que temos sobre a sexualidade-padrão, será necessário preencher-se com informações. E, claro, com empatia.





Laerte é uma figura já muito conhecida, tanto entre a comunidade LGBT como na grande mídia. E, com a sua exposição nesses meios, tornou-se também uma personalidade enigmática para muitos, especialmente aqueles que pouco acompanham as discussões sobre gênero. Além disso, é alguém icônico, por ter optado por uma mudança tardia, após os 60 anos - um retrato da forma de lidar com os tabus de cada época.

O documentário de Eliane Brum é uma conversa franca com Laerte, retomando fatos de sua biografia e colocando luz sobre questões que permanecem obscuras para o público em geral: o que é o gênero sexual? O que o define? Quais são os limites do corpo?




Entretanto, se Laerte é uma escolha amorosa para ser o centro de um filme sobre o tema, apenas isso não garante a qualidade da obra. Há um ritmo exageradamente lento na narração dos fatos, como se houvesse um desejo de alongar a produção a qualquer custo. As animações das tirinhas da cartunista, ainda que sejam uma boa forma de conhecer o seu trabalho, são tecnicamente mal realizadas, e acabam tornando o documentário um tanto parado - ao contrário da vida de sua biografada, tão intensa, potente e animada. Apesar de uma ou outra falha técnica, contudo, é um filme necessário - e esclarecedor.





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