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Tempo de migrar para o norte (Tayeb Salih)

Culturas são intransponíveis - carregadas de histórias, linguagens e modos de viver únicos, revelam o quanto o diálogo com o outro é necessário, ainda que nunca seja completo. Por mais forte que seja a nossa empatia (in + pathos), o colocar-se no lugar do alheio é sempre uma tentativa frustrada, uma compreensão parcial. As vivências não se traduzem; em vez de reduzirmos culturas na busca por ideais sinônimos perfeitos, talvez nossa atitude diante do diverso deva ser sempre a de uma humilde tentativa de entendimento - que já sabemos, por antemão, ser impossível. 

A narrativa de "Tempo de migrar para o norte" choca o leitor ocidental não apenas por sua forte alegoria de violência contra o colonizador branco, mas também por revelar o quão pouco compreendemos das vivências africanas (especialmente no que se refere ao Sudão). 
As práticas culturais descritas na obra podem nos causar desde estranhamento até a mais profunda aversão, como no caso da circuncisão feminina. 

No entanto, é difícil sustentar qualquer argumentação sobre preconceito ou opressão neste romance. Com um narrador bastante passivo, que apenas acompanha os acontecimentos, vemos o confronto entre o Oriente e o Ocidente pela perspectiva de alguém que pouco intervém, apesar de fascinar-se pelas histórias desse embate. Muito além do engajamento partidário, o que a obra revela é um panorama - intenso, complexo, inconciliável - das diversas culturas presentes no Sudão no começo do século XX.

Além do olhar de um africano sobre o homem branco (especialmente o europeu), outro recurso aportado pela escrita de Tayeb Salih é a sua musicalidade. Mesclando diversos elementos do gênero poético à sua escrita, o autor define um estilo único, que nos remete imediatamente à beleza da língua árabe e à importância de bem narrar uma ficção.



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