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Paletó e eu (Aparecida Vilaça)

Julgando pela capa, ao ver o lançamento da editora Todavia não me interessei pela leitura da obra; a temática abordada (uma etnia indígena específica) e o campo de atuação (antropologia) em princípio não dialogaram comigo. No entanto, após ver a apresentação de Aparecida Vilaça na Flip, não tive como não ser fisgada pela proposta deste livro.

"Paletó e eu" é um canto fúnebre - uma narrativa que tenta dar conta da emoção da autora ao descobrir que seu pai indígena havia falecido. No percurso afetivo que o livro traça, somos conduzidos não só para o interior da família pluriétnica de Vilaça, mas também nos aproximamos do campo instigante da antropologia (essa fascinante ciência da alteridade).

Ainda que pautado pela emoção, o livro é uma obra poderosa também para discutir questões ainda mais profundas - como o massacre dos indígenas ao longo da história e sua aculturação pelos evangelizadores. 

Com momentos de humor (como o de Paletó explicando o porquê de seu apelido), fotos de família, explicação de rituais indígenas que foram se perdendo, análises perspicazes do contexto sociocultural e profunda empatia pelo outro, esta obra é um presente que vai muito além do destinatário inicial a quem foi pensada.

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