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Hannah Gadsby: Nanette (filme de 2018)

Aparentemente despretensioso, em princípio o filme não seria nada mais do que a filmagem de um talk show, de mais ou menos 1 hora de duração. No entanto, são muitas as surpresas que essa pequena obra de arte guarda - capazes de conquistar até o público mais avesso ao gênero stand up (dentre o qual me encaixo).

O que Hannah Gadsby faz em seu discurso, sem deixar de divertir a plateia, é lançar reflexões profundas tanto sobre o gênero textual (a comédia) quanto sobre o sexual (uma vez que se define como lésbica). E, nessa proposta ousada de desconstruções, conduz questionamentos incômodos e agudos sobre ambas as questões.

Ainda que atenda à expectativa inicial de um talk show, com bons chistes, o que a comediante australiana faz é dar um espetáculo retórico. Com um discurso emocional, angaria o pathos do público para em seguida capturá-lo pela racionalidade. Sua argumentação é absolutamente bem estruturada, a ponto de conseguir subverter completamente as estruturas do gênero comédia. E, nesse sentido, é literalmente um talk show - espetáculo de fala, discurso, argumento.




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