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Anne of Green Gables (L. M. Montgomery)

Apesar de só ter virado hype no Brasil recentemente, em função da série "Anne with an E" na Netflix, o romance quase homônimo foi um grande sucesso da literatura infantojuvenil na época de seu lançamento, no início do século XX. Quase que uma predecessora do boom dos livros para crianças, a escritora L. M. Montgomery, animada pelas enormes vendas, publicou várias sequências para a sua história, transformando-a em um verdadeiro ícone da ficcção.




Um exemplo do quanto a trama foi (e é marcante) é o fato de que a ilha em que supostamente viveu a personagem Anne tornou-se uma rota de turismo, com direito a selfies tiradas em frente às casas típicas do lugar e compra de muitos souvenires. Adaptada para desenhos japoneses, criou também uma legião de fãs do outro lado do mundo.

Mas em que esse enredo, com um clima marcadamente bucólico, ainda atinge os leitores (e espectadores) de nosso tempo?

Talvez despercebidos na época do lançamento, há muitos traços modernos nesta pequena obra de Montgomery: uma leve, tímida discussão do feminismo, a prerrogativa de que uma menina pode fazer o que quiser e ser quem quiser ser, o desafio às convenções sociais, o questionamento do bullying, da religiosidade forçada...

Os aspectos contemporâneos de Anne só são vistos em uma leitura mais atenta; afinal, escrito por uma mulher no início do século passado, só foi um sucesso de público por louvar os valores mais tradicionais: a família, a fé, a honestidade, os bons modos. Ainda assim, há um subtexto que salva o livro de um pesado conservadorismo.

É um livro infantil que não inferioriza o sue leitor; ao longo da história, vemos a personagem passar por diferentes momentos (bons e maus), sem que nada seja aliviado ou escondido do seu público. É uma trama para crianças, mas verossímil em seu retrato da realidade, que não é maquiada. Anne sofre, enfrenta mortes, arrependimentos, tristezas, seu processo de crescimento - e, com ela, amadurece também o leitor.

Outro ponto de destaque são as referências literárias (Anne é uma grande leitora) e a linguagem característica da personagem.

Apesar de ser canadense (e não inglês), é uma obra que convida a um chazinho das 5 com bolachas - extremamente afetiva, gostosa de ler, reconfortante como o som de "e" ao final de "Anne".


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