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O livro do chá (Kakuzo Okakura)

Quanta filosofia cabe em uma xícara de chá?

Nesta obra, de 1906, temos, em poucas páginas, muito mais do que a descrição do ritual do chá no Japão - o livro é um verdadeiro compêndio de boa parte da filosofia oriental. Conceitos difíceis, como a diferença entre o taoísmo, o budismo, o xintoísmo, ficam claros como a água - fervente - pelas palavras de Okakura.

A redação da obra é direta e simples - como uma boa cerimônia do chá deve ser. Assim, a aproximação com a cultura oriental fica muito mais viável. O que era extravagante passa a ser compreensível e o que era exótico passa a ser visto como indispensável.

Os lados ocidental e oriental se complementam; mais do que explicar seus valores, o autor faz um apelo à compreensão entre os povos. Ainda que suas críticas aos ocidentais - mesmo hoje bastante pertinentes - apareçam em boa parte do livro, o que prevalece é o discurso pelo entendimento, tolerância e aprendizagem com as demais culturas.

Nota: 9,5

Trechos:

"O 'chaísmo' é um culto que se fundamenta na veneração da beleza em meio à sordidez dos acontecimentos diários. Incute a pureza e a harmonia, o mistério da caridade mútua, o romantismo da ordem social. É essencialmente a veneração do imperfeito, uma tentativa singela de conquistar o possível em meio a esta coisa impossível que conhecemos como vida.”

"Mas quando consideramos quão pequena é afinal a xícara do prazer humano, quão rápido ela transborda de lágrimas, quão fácil se esgota em nossa sede insaciável por infinitude, deixando apenas borra, não deveríamos nos censurar por darmos tanta importância à xícara de chá.”

"Aqueles incapazes de sentir em si mesmos a pequenez das coisas grandiosas tendem a ignorar nos outros a grandiosidade das pequenas coisas."

"Vamos sonhar com o efêmero, e demoremo-nos um pouco mais na formosa tolice das coisas."

"Pois a vida é uma expressão, e nossos atos inconscientes são a constante traição de nossos pensamentos mais íntimos. Confúcio disse que 'o homem não se esconde'. Talvez nos revelemos em demasia nas pequenas coisas por termos tão pouco das grandes para ocultar. Minúsculos incidentes da rotina diária constituem-se em comentários de ideais raciais tanto quanto os mais elaborados arroubos filosóficos ou poéticos."

"Para a mente neoconfuciana, a lei cósmica não se refletia no mundo fenomenal, mas o mundo fenomenal era a própria lei cósmica. O eterno eram apenas momentos - nirvana, sempre ao alcance da mão. A concepção taoísta de que a imortalidade está na eterna mutação permeou todas as modalidades do seu pensamento. O processo, e não o ato, era interessante. Completar, e não o completo, era verdadeiramente vital. Desta maneira, o homem se viu sem demora frente a frente com a natureza. Um novo sentido germinou na arte da vida."

"Para o chinês dos últimos tempos, o chá é uma bebida deliciosa, mas não um ideal. Os longos períodos de sofrimento pelos quais seu país passou arrebataram dele o gosto pela vida. Ele se tornou moderno, ou seja, velho e desiludido. Perdeu aquela fé sublime nos sonhos, fé que se constitui em fonte de eterna juventude e de vigor para poetas e antigos. Ele é eclético e aceita educadamente as tradições do universo. Brinca com a natureza, mas não se digna a conquistá-la ou cultuá-la."

"A tradução é sempre uma traição e, como observa um autor da dinastia Ming, pode na melhor das hipóteses ser o reverso de um brocado - todos os fios estão ali, mas não a sutileza da cor ou do desenho."

"Definição é sempre uma limitação - "fixo" e "imutável" são apenas termos que expressam interrupção de crescimento. Kutsugen disse: 'Os sábios movem o mundo.' Nossos padrões de moralidade tiveram origem em necessidades passadas da sociedade, mas a sociedade tem de permanecer sempre a mesma? A observância das tradições comunais envolve constante sacrifício do indivíduo em favor do Estado. A educação, como meio para alimentar a grande ilusão, encoraja uma espécie de ignorância. As pessoas não são ensinadas a serem realmente virtuosas, mas a se comportar com propriedade. Somos maus porque temos assustadora autoconsciência. Nunca perdoamos os outros por saber que nós mesmos erramos. Cuidamos da consciência porque tememos dizer a verdade aos outros; refugiamo-nos no orgulho porque tememos dizer a verdade a nós mesmos. Como pode alguém ser sério com o mundo quando o próprio mundo é tão ridículo! O espírito da barganha está em toda parte. Honra e castidade! Vejam o mercador presunçoso vendendo o bem e a verdade no varejo. Pode-se até comprar aquilo que chamamos de religião, que na verdade é apenas moralidade comum santificada com flores e música. Roubem da Igreja seus acessórios e o que resta? Não obstante, cartéis vicejam, pois os preços são absurdamente baratos - uma oração por uma passagem para o paraíso, um diploma por uma cidadania honrada. Oculte seu próprio mérito, pois, caso sua utilidade real se torne conhecida, aquele que der o lance mais alto o arrematará em hasta pública. Por que homens e mulheres gostam de se autopromover?"

"É em nós que Deus encontra a natureza, e o ontem se aparta do amanhã. O presente é a infinitude movente, a esfera legítima do relativo. A relatividade busca ajustamento; ajustamento é arte. A arte da vida repousa num constante reajustamento ao nosso meio."

"Ao deixar algo não dito, é concedida ao observador a oportunidade de completar a ideia; deste modo, uma grande obra-prima prende sua atenção até você ter a impressão de ser realmente parte da obra. O vácuo está ali para que você possa entrar e preenchê-lo completamente com sua emoção estética."

"Aquele que dominava a arte de viver era o verdadeiro homem taoísta. Ao nascer, ele entra no reino dos sonhos apenas para despertar para a realidade na morte. Tempera o próprio brilho de modo a se fundir na obscuridade alheia."

"Na monumental relação das coisas, não existia distinção entre o pequeno e o grande, um átomo e o universo possuem idênticas possibilidades. Aquele que busca a perfeição deve descobrir em sua própria vida o reflexo de sua luz íntima."

"Diz-se que os gregos eram magníficos porque nunca copiaram os antigos."

"Destarte, vemos que o sistema decorativo de nossos aposentos de chá se opõe àquilo que prevalece no Ocidente, onde o interior de uma casa é geralmente transformado num museu. Para um japonês, habituado à simplicidade em matéria de ornamentação assim como à frequente mudança de métodos decorativos, o interior ocidental permanentemente repleto de uma vasta série de pinturas, estátuas e bricabraques dá a impressão de mera e vulgar ostentação de riqueza. Mesmo uma obra-prima demandaria impressionante dose de capacidade apreciativa caso a víssemos constantemente e sem dúvida ilimitada teria de ser a sensibilidade artística daqueles que vivem dia após dia em meio à confusão de cores e formas que frequentemente encontramos em casas europeias e americanas."

"Nossa mente é uma tela sobre a qual artistas espalham as cores; os pigmentos são nossas emoções: o claro-escuro, a luz da alegria e a sombra da tristeza. A obra-prima é tão nossa quanto nós somos da obra-prima."

"Nada é real para nós, exceto a fome; nada é sagrado, exceto os nossos próprios desejos. Uns após outros, santuários desabaram diante dos nossos olhos, mas um único altar foi para sempre preservado: aquele em que incensamos nosso ídolo supremo - nós mesmos. Nosso deus é grande, e o dinheiro é seu profeta."

"'Corra, corra, corra, corra, o curso da vida segue sempre adiante. Morra, morra, morra, morra, a morte chega para todos.' A destruição nos encara, para onde quer que nos voltemos. Destruição abaixo e acima, destruição atrás e adiante. Mutação é o único eterno - por que não acolher a morte com tanto prazer quanto a vida?"

"No âmbito religioso, o futuro está no nosso passado. No artístico, o presente é eterno."

"Aqueles de nós que não conhecem o segredo de ajustar adequadamente a própria existência neste tumultuado mar de problemas que chamamos vida estão em constante estado de miséria, enquanto tentam em vão parecer felizes e contentes."

"'Muitas pessoas que observam a cerimônia do chá pela primeira vez consideram rígida e limitante a obediência ao comportamento formal, mas a informalidade, com frequência preferida pelos jovens, não é necessariamente liberadora.'"

"'Certo mestre zen chinês chamado Dorin, ao renunciar à vida mundana, resolveu viver numa árvore. O poeta Po Chu-i foi ver o que poderia aprender com ele.
Po disse: 'Mestre! Sua habitação é precária.' O mestre zen respondeu: 'Precário é o seu modo de vida - que o envolve no mundo e que negligencia sua natureza real.'
Po perguntou: 'Qual é o ensinamento de Buda?'
Dorin respondeu: 'Evite as ações erradas e faça o bem'.
'Qualquer criança de três anos sabe disso', respondeu o poeta.
O monge disse: 'Uma criança de três anos pode saber, mas até mesmo um velho de oitenta se perderá na prática.''"







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