Rilke é um poeta de uma obra não muito extensa, porém de uma forte influência sobre diversos autores e, inclusive, filósofos como Jean-Paul Sartre. O único romance escrito pelo poeta alemão, estes cadernos de Malte Laurids Brigge, são reconhecidos por muitos como uma das inspirações para o movimento existencialista e, também, para o expressionista.
Uma mistura de prosa, poesia, filosofia e arte, portanto. Dessa síntese resulta um livro que, apesar de curto, é de leitura bastante difícil. O narrador nos guia quase por um fluxo de consciência, sem se preocupar em apresentar os personagens ou situações que se desenrolam ao longo da trama. E todo esse cenário é pontuado ainda por reflexões filosóficas complexas - o que é a vida, a morte, a capacidade de enxergar - e metáforas herméticas.
Não foi um livro de que absorvi muito - pelo tamanho, esperava uma leitura rápida, mas me deparei com um texto intrincado, para o qual precisaria de uma série de outras referências. Talvez lendo um pouco de Sartre, conhecendo o movimento existencialista, a obra se torne mais fácil. Para quem só conhece filosofia por "O mundo de Sofia", como eu, o livro de Rilke é um verdadeiro enigma.
Apesar de ter compreendido pouco da obra, não posso dizer que não gostei. Há cenas descritas com tanta beleza que valem a pena todo o tempo gasto com parágrafos dos quais pouco se absorve. Sua apologia a leitura, por exemplo, é um dos pensamentos mais belos e sinceros que já vi sobre a paixão pela escrita:
"[...] não se tem o direito de abrir um livro sem assumir o compromisso de ler todos. A cada frase começamos o mundo. Antes dos livros ele fora algo intacto, e talvez depois deles voltasse a ficar inteiro."
Trechos:
“Será que já contei isso? Estou aprendendo a ver. Sim, estou começando. Ainda o faço mal. Mas quero aproveitar bem meu tempo.”
“Mas os dias de aniversário eram os mais ricos em experiências intangíveis. Eu já sabia que a vida não gostava de fazer distinções; mas naquele dia a gente se levantava com direito à alegria, um direito indubitável. (...) Mas depois vêm aqueles aniversários estranhos, em que, absolutamente certo daquele direito, se nota que os outros começam a duvidar.”
“Acho que eu deveria começar a fazer algo, a trabalhar, agora que estou aprendendo a ver. Tenho vinte e oito anos, e praticamente não aconteceu nada. Vamos recordar: escrevi um ensaio sobre Carpaccio, que é ruim, um drama chamado O Casamento, que pretende provar algo falso com meios ambíguos, e versos. Devia-se esperar, reunir sentido e doçura numa vida inteira, se possível bem longa, e depois, bem no fim, talvez se conseguissem dez versos bons. Pois versos não são, como as pessoas imaginam, sentimentos (a esses, temos cedo demais) – são experiências. E por causa de um verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer bichos, é preciso sentir como voam os pássaros, e saber com que gestos flores diminutas se abrem ao amanhecer. É preciso poder recordar caminhos em que há muito sentíamos chegar – dias da infância, ainda não explicados, os pais que tínhamos de magoar quando nos davam alguma alegria e não a entendíamos (era uma alegria para outra pessoa), doenças de criança que começavam de modo tão singular, com tantas e tão profundas transformações, dias em quartos silenciosos e isolados, e manhãs no mar, o mar sobretudo, mares, noites de viagem rumorejando no alto e voando com todas as estrelas – e poder pensar em tudo isso ainda não é suficiente. É preciso ter lembranças de muitas noites de amor, nenhuma semelhante à outra, gritos de mulheres dando à luz, leves e alvas parturientes adormecidas que se tornavam a fechar. E também é preciso ter estado com moribundos, sentar-se junto aos mortos no quartinho com a janela aberta, e aqueles ruídos intermitentes. E também não basta ter recordações. É preciso saber esquecê-las, quando são muitas, e ter a grande paciência de esperar que retornem por si. Pois as lembranças em si ainda não não o são. Só quando se tornarem sangue em nós, olhar e gesto, sem nome, não mais distinguíveis de nós mesmos, só então pode acontecer que numa hora muito rara se erga do meio delas a primeira palavra de um poema."
“Na vida não há aulas para os principiantes, logo nos pedem o mais difícil."
“Mas agora que tanta coisa está mudando não será nossa vez de nos transformarmos também? Não podemos tentar evoluir um pouco, e gradualmente, assumir nossa parte no ofício de amar? Sempre nos pouparam esse esforço, e aos poucos ele se perdeu por entre nossas distrações, como por vezes da gaveta de brinquedos de uma criança sai um pedaço de renda autêntica, que lhe dá alegria, e depois já não a alegra mais, e por fim acaba entre coisas quebradas ou desmontadas, pior que todas elas. Ficamos estragados pelo prazer fácil, como todos os diletantes, mas temos fama de mestres. Como seria se desprezássemos nossos sucessos e começássemos a aprender, bem do começo, o ofício de amar, que sempre foi feito por nós? E se nos tornássemos aprendizes, agora que tanta coisa está mudando? "
“É bom simplesmente constatar certas coisas que não podem mais ser mudadas, sem lamentar os fatos, nem julgá-los. Assim, entendi com clareza que nunca fui um verdadeiro leitor. Na infância, ler pareceu-me uma profissão que um dia eu assumiria, mais tarde, quando viessem todas as profissões, uma depois da outra. Na verdade eu não tinha uma idéia muito exata de quando isso aconteceria. Confiava em que se notaria, quando a vida desse uma certa volta, e viesse apenas de fora, assim nítido e óbvio, e nada se pudesse interpretar mal. Nada simples, ao contrário bastante exigente, e complexo, e difícil, mas mesmo assim visível. Esse ilimitado tão singular da infância, o desproporcionado, o nunca-bem-prevísivel, isso estaria superado. Na verdade, não conseguia imaginar por quê. No fundo tudo continuava crescendo, fechando-se de todos os lados, e quanto mais eu olhava para fora mais as coisas se revolviam em meu interior. Sabe Deus de onde provinham! Provavelmente, porém, estavam crescendo para alguma forma externa, e depois cessariam, de um golpe só. Era fácil observar: que os adultos se inquietavam um pouco com essas coisas; andavam por ali, faziam julgamentos, agiam, e quando estavam em dificuldades era culpa das circunstâncias externas."
“Quem poderá descrever o que então lhe acontecera? Que poeta tem persuasão suficiente para comparar a extensão daqueles dias com a brevidade da vida? Que arte é bastante ampla para evocar a um só tempo seu vulto magro e embuçado, e todo o superabundante espaço das suas noites imensas? "
Uma mistura de prosa, poesia, filosofia e arte, portanto. Dessa síntese resulta um livro que, apesar de curto, é de leitura bastante difícil. O narrador nos guia quase por um fluxo de consciência, sem se preocupar em apresentar os personagens ou situações que se desenrolam ao longo da trama. E todo esse cenário é pontuado ainda por reflexões filosóficas complexas - o que é a vida, a morte, a capacidade de enxergar - e metáforas herméticas.
Não foi um livro de que absorvi muito - pelo tamanho, esperava uma leitura rápida, mas me deparei com um texto intrincado, para o qual precisaria de uma série de outras referências. Talvez lendo um pouco de Sartre, conhecendo o movimento existencialista, a obra se torne mais fácil. Para quem só conhece filosofia por "O mundo de Sofia", como eu, o livro de Rilke é um verdadeiro enigma.
Apesar de ter compreendido pouco da obra, não posso dizer que não gostei. Há cenas descritas com tanta beleza que valem a pena todo o tempo gasto com parágrafos dos quais pouco se absorve. Sua apologia a leitura, por exemplo, é um dos pensamentos mais belos e sinceros que já vi sobre a paixão pela escrita:
"[...] não se tem o direito de abrir um livro sem assumir o compromisso de ler todos. A cada frase começamos o mundo. Antes dos livros ele fora algo intacto, e talvez depois deles voltasse a ficar inteiro."
Trechos:
“Será que já contei isso? Estou aprendendo a ver. Sim, estou começando. Ainda o faço mal. Mas quero aproveitar bem meu tempo.”
“Mas os dias de aniversário eram os mais ricos em experiências intangíveis. Eu já sabia que a vida não gostava de fazer distinções; mas naquele dia a gente se levantava com direito à alegria, um direito indubitável. (...) Mas depois vêm aqueles aniversários estranhos, em que, absolutamente certo daquele direito, se nota que os outros começam a duvidar.”
“Acho que eu deveria começar a fazer algo, a trabalhar, agora que estou aprendendo a ver. Tenho vinte e oito anos, e praticamente não aconteceu nada. Vamos recordar: escrevi um ensaio sobre Carpaccio, que é ruim, um drama chamado O Casamento, que pretende provar algo falso com meios ambíguos, e versos. Devia-se esperar, reunir sentido e doçura numa vida inteira, se possível bem longa, e depois, bem no fim, talvez se conseguissem dez versos bons. Pois versos não são, como as pessoas imaginam, sentimentos (a esses, temos cedo demais) – são experiências. E por causa de um verso é preciso ver muitas cidades, pessoas e coisas, é preciso conhecer bichos, é preciso sentir como voam os pássaros, e saber com que gestos flores diminutas se abrem ao amanhecer. É preciso poder recordar caminhos em que há muito sentíamos chegar – dias da infância, ainda não explicados, os pais que tínhamos de magoar quando nos davam alguma alegria e não a entendíamos (era uma alegria para outra pessoa), doenças de criança que começavam de modo tão singular, com tantas e tão profundas transformações, dias em quartos silenciosos e isolados, e manhãs no mar, o mar sobretudo, mares, noites de viagem rumorejando no alto e voando com todas as estrelas – e poder pensar em tudo isso ainda não é suficiente. É preciso ter lembranças de muitas noites de amor, nenhuma semelhante à outra, gritos de mulheres dando à luz, leves e alvas parturientes adormecidas que se tornavam a fechar. E também é preciso ter estado com moribundos, sentar-se junto aos mortos no quartinho com a janela aberta, e aqueles ruídos intermitentes. E também não basta ter recordações. É preciso saber esquecê-las, quando são muitas, e ter a grande paciência de esperar que retornem por si. Pois as lembranças em si ainda não não o são. Só quando se tornarem sangue em nós, olhar e gesto, sem nome, não mais distinguíveis de nós mesmos, só então pode acontecer que numa hora muito rara se erga do meio delas a primeira palavra de um poema."
“Na vida não há aulas para os principiantes, logo nos pedem o mais difícil."
“Mas agora que tanta coisa está mudando não será nossa vez de nos transformarmos também? Não podemos tentar evoluir um pouco, e gradualmente, assumir nossa parte no ofício de amar? Sempre nos pouparam esse esforço, e aos poucos ele se perdeu por entre nossas distrações, como por vezes da gaveta de brinquedos de uma criança sai um pedaço de renda autêntica, que lhe dá alegria, e depois já não a alegra mais, e por fim acaba entre coisas quebradas ou desmontadas, pior que todas elas. Ficamos estragados pelo prazer fácil, como todos os diletantes, mas temos fama de mestres. Como seria se desprezássemos nossos sucessos e começássemos a aprender, bem do começo, o ofício de amar, que sempre foi feito por nós? E se nos tornássemos aprendizes, agora que tanta coisa está mudando? "
“É bom simplesmente constatar certas coisas que não podem mais ser mudadas, sem lamentar os fatos, nem julgá-los. Assim, entendi com clareza que nunca fui um verdadeiro leitor. Na infância, ler pareceu-me uma profissão que um dia eu assumiria, mais tarde, quando viessem todas as profissões, uma depois da outra. Na verdade eu não tinha uma idéia muito exata de quando isso aconteceria. Confiava em que se notaria, quando a vida desse uma certa volta, e viesse apenas de fora, assim nítido e óbvio, e nada se pudesse interpretar mal. Nada simples, ao contrário bastante exigente, e complexo, e difícil, mas mesmo assim visível. Esse ilimitado tão singular da infância, o desproporcionado, o nunca-bem-prevísivel, isso estaria superado. Na verdade, não conseguia imaginar por quê. No fundo tudo continuava crescendo, fechando-se de todos os lados, e quanto mais eu olhava para fora mais as coisas se revolviam em meu interior. Sabe Deus de onde provinham! Provavelmente, porém, estavam crescendo para alguma forma externa, e depois cessariam, de um golpe só. Era fácil observar: que os adultos se inquietavam um pouco com essas coisas; andavam por ali, faziam julgamentos, agiam, e quando estavam em dificuldades era culpa das circunstâncias externas."
“Quem poderá descrever o que então lhe acontecera? Que poeta tem persuasão suficiente para comparar a extensão daqueles dias com a brevidade da vida? Que arte é bastante ampla para evocar a um só tempo seu vulto magro e embuçado, e todo o superabundante espaço das suas noites imensas? "




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