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Fábulas (La Fontaine)

"Permitam-me iniciar essa resenha com uma nota pessoal: sou um admirador semicontido de ditos populares. Já ouvi muito ser dito a respeito de serem eles chavões, frases feitas ou expressões tão gastas que perderam seu sentido, mas não consigo deixar de estender meus pensamentos à reflexão cada vez que um deles é utilizado em minha presença. Há aqueles clássicos como “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura” ou “Em casa de ferreiro o espeto é de pau”. Tem alguns outros que carregam uma advertência velada, como “Em boca fechada não entra mosquito” ou “O apressado come cru”. Isso sem contar um dos meus favoritos, que considero rascante, que é “Caixão não tem gaveta”.


É um fato que tirando-os dos contextos em que foram utilizados, eles acabam perdendo um pouco de sua força. Isso não deixa, contudo, que eles percam aquele algo de ligeiramente filosófico que há em cada um deles, ainda que a pessoa que os utilize muitas vezes o faça mais pela repetição oportuna do que propriamente por ponderar sobre o que fala. Tal, no entanto, não faz com que os ditos populares deixem de ser um objeto de estudo tão interessante quanto divertido. Há qualquer coisa de sabedoria por debaixo de suas formas simples, algo, por exemplo, que Saramago soube explorar com talento cada vez que recorre a um deles para torná-los fala de seus personagens ou para costurarem a narrativa, ou mesmo para ponderar sobre uma questão específica.

O motivo pelo qual escrevi sobre os ditos populares foi porque lembrei constantemente deles enquanto lia as Fábulas selecionadas de La Fontaine. E creio que o motivo dessa lembrança é mais do que fortuito, pois se a moral das fábulas de La Fontaine encontra-se tão próxima da moral dos ditos populares – guardadas as devidas proporções –, isso só vem a contribuir para que notemos a sensibilidade do autor em capturar verdades que continuam aplicáveis e minimamente coerentes até hoje.

O fabulista francês viveu no século XVII e compilou suas fábulas de 1668 a 1694. Mesmo não sendo nobre, a família de La Fontaine possuía uma situação material estável por conta dos serviços que prestava ao ducado de Château-Thierry como uma espécie de lugar-tenente ou delegado local. Mesmo tendo assumido a função do pai na supervisão das terras nobres, La Fontaine pôde se dedicar aos estudos e a sua carreira de escritor em Paris, visto que aquele trabalho somente lhe exigia assiduidade ocasional.

Encontrando o mecenato de Fouquet, primeiramente, e do duque e da duquesa de Bouillon, posteriormente, La Fontaine pôde dedicar-se à literatura sem outras grandes preocupações que não aquelas acima mencionadas. Ele passou, à época, a ocupar-se assiduamente da leitura de obras de outros grandes fabulistas, como Babrio e Esopo, e da escrita de peças e poemas, prenunciando a forma e o estilo de suas posteriores fábulas.

Há diversos aspectos e elementos das fábulas que poderiam ser elencados para discussões acerca da moral francesa e europeia do século XVII, ou da visão de um quase-nobre sobre a sociedade francesa, a feudalidade e as transformações históricas que aconteciam na França. Sendo o ponto de inserção histórica do autor e das fábulas justamente aquele em que os elementos da modernidade começavam a dar as caras na realidade francesa, ainda que muitos de forma tímida, sua obra carrega cicatrizes simbólicas dessa situação, como, por exemplo, a forma satírica como o homem aparece diante das situações do mundo, sempre com algo irônico nas entrelinhas de suas atitudes e pensamentos, não raro com um tom crítico velado.

Um dos aspectos mais desconcertante das fábulas de La Fontaine é o fato de elas serem, a um tempo, limpidamente simples e sensivelmente elaboradas.
A simplicidade límpida advém dos personagens e das situações dos quais ele se utiliza: embora os homens apareçam nas histórias, são os animais, na maioria das vezes, que as protagonizam. Além disso, não há a preocupação – nem a necessidade – em criar histórias complexas, pois elas são, meramente, o caminho pelo qual a moral – o ponto alto de suas fábulas – deve trilhar. La Fontaine se abstém da prerrogativa de destacar uma moral ao fim de cada fábula, o que não significa que ela não esteja lá, diluída na história e no desfecho dos personagens.

Evidência disso é a fábula que abre o livro, na qual vários animais analisam-se a si próprios, a pedido do criador. Depois de terem, o macaco, o elefante, a baleia, o urso e outros mais dito que estavam satisfeitos, não puderam deixar de comentar a respeito do que consideravam os defeitos uns dos outros. Eis que nesse ponto surgem os versos que servem à guisa de consideração moral:

Quando a nós tudo e aos outros nada perdoamos:
Ninguém se lança o mesmo olhar que ao semelhante.
O soberano Fabricante
Nos dotou de Alforjes feitos do mesmo jeito,
Quer sejamos de hoje, quer dos tempos de outrora.
Fez o bolso de trás só para os nossos defeitos
E o da frente deixou para os dos outros, fora (p. 11)
É uma história simples, uma trama sem grandes elaborações. Mas se trata de uma história que esconde, precisamente em seus contornos simples, considerações morais e existenciais nada simples. A imagem de homem construída por La Fontaine não deixa de alfinetar vários aspectos de sua existência, valorizando as virtudes e condenando os vícios.

A elaboração sensível, por sua vez, aparece principalmente em dois pontos. O primeiro deles, como é da própria natureza da fábula, aparece nas perorações morais – como aquela apontada acima – que lhe serve de desfecho. La Fontaine, nesse sentido, é claro o suficiente para pontuar a crítica sem se tornar por demais didático. O segundo ponto de sua elaboração encontra-se na construção estilística e no uso da poética. La Fontaine esmerou-se na feitura das rimas e nas inversões que constituem as fábulas. Os versos estão dispostos de modo a construir a narrativa, mas sem que, para tal, precisem perder a sonoridade e o ritmo encriptado advindo das sobreposições e movimentações invertidas entre eles.

Nesse quesito fazem-se necessários dois destaques. O primeiro é o fato de a edição da Cosac Naify ser bilíngue, o que permite acompanhar o francês e cotejá-lo com o português. Embora eu não saiba francês o suficiente para mais que perceber estratégias de tradução e adequação aqui e ali, creio que a presença do original lado a lado com o texto traduzido é muito bem-vinda. O segundo destaque é o reconhecimento e elogio ao esforço de Leonardo Fróes, o tradutor da edição em questão. Trazer as rimas e buscar preservar questões de estilo ao longo de uma tradução – ainda mais de um texto que data do século XVII – é extremamente difícil, de modo que se temos as fábulas de La Fontaine com rimas e o respeito vernacular a questões de estilo, devemos isso à preocupação e o esmero de Leonardo Fróes em buscar o tom, o ritmo e as equivalências linguísticas entre um e outro. Embora alguns versos não pareçam soar naturais, isso não se dá por alguma falta de Fróes, mas pela peculiaridade das línguas enquanto organismos simbólicos e gramaticais muito diversos.

A permeabilidade da moral das fábulas de La Fontaine nos ditos e na sabedoria popular aponta para a relevância que tais considerações e pensamentos tiveram para os rumos da história. Isso pode ser entrevista na fábula “A Galinha dos ovos de ouro”, em que a ganância mostra sua estupidez; ou em “O Burro que carregava relíquias”, onde a vaidade mostra sua capacidade de criar ilusões narcisísticas; ou em “O Homem e o Ídolo de madeira”, em que a natureza dúbia da crença é posta em questão. Cada fábula esconde pequenos tesouros, cabe-nos, para lê-los e fruí-los, ter o esmero que La Fontaine teve para escrevê-los."

(Lucas Deschain)

In: http://www.posfacio.com.br/2013/08/28/as-fabulas-de-la-fontaine/


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