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José e Pilar (Miguel Gonçalves Mendes)

As entrevistas feitas por Miguel Gonçalves, que guiaram o lindíssimo filme sobre a vida de Saramago, têm a vantagem de revelarem um personagem que nada tem de coadjuvante: Pilar, com suas ideias fortes e convicções inabaláveis, é tão ou mais encantadora do que aquele que deveria ser o foco central da conversa.



Trechos:

"José: [...] uma pessoa pode, enfim, por uma perda da pessoa a quem ama, por exemplo, suicidar-se, a isso chamaria eu morrer de amor. Agora não há nenhuma doença do amor, ou melhor, as doenças do amor são de outra natureza, são o cansaço, são o aborrecimento, são a rotina, essas são as doenças do amor. Agora, morrer de amor? Não sei.

Pilar: Pode-se morrer de sofrimento, pode-se morrer de desgosto... Disso que falávamos antes, de perversão, da perversão dos sentimentos que podem ir consumindo, mas o amor é expansivo, enche tudo. Não se pode morrer de amor. Creio que se vive de amor."

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"A cultura, que é o melhor e único bem possível." (Pilar)

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"O meu caminho sempre foi mais ou menos em linha reta, ou pelo menos sem perder o sentido da linha reta a que me havia obrigado por razões de ordem ética, de ordem política, de ordem ideológica. E isso, enfim, não é fácil perceber - numa sociedade de oportunistas, de arranjistas, de pessoas que andam à procura de quem melhor lhes paga para que melhor se vendam -, isto não se perdoa." (Pilar)

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"Primeiro, porque aprendi uma coisa que me propus como norma de vida quando era pequena: para descansar e termos a eternidade, quando morrermos, descansaremos. Segunda coisa que aprendi: não há nada mais repugnante que... bem, sim, há muitas coisas repugnantes, mas também é repugnante queixar-se. Que horror! Ou seja, estar cansado quando nos corre o sangue nas veias, o que é um privilégio, nada mais nada menos que o privilégio de estarmos vivos... Considero que enquanto estivermos vivos temos que estar vivos e depois passaremos ao descanso. Enquanto isso, a vida traz os dias, e os dias, cada um, vinte e quatro horas, e portanto dá tempo para muitíssimas coisas... Porque o que não fizermos hoje... Tem algo mais que considero importante, que para mim é importante: viver todos os dias como se fosse o primeiro e como se fosse o último. Isso eu tenho muito claro toda manhã quando me levanto, que se for o último não vão ficar coisas por fazer, e que vou vivê-lo com a mesma ilusão do primeiro. Há cinquenta e seis anos estou fazendo isso e não tenho me dado mal. Mantenho-me. Mantenho-me melhor que outros." (Pilar)

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"O que eu quero dizer é que toda a gente quer que se fale do amor; provavelmente à espera de que aconteça um milagre, e um dia alguém seja capaz de dizer o que é que isso efetivamente é. Mas não se pode. Não se sabe o que é. Há um soneto do Camões exatamente sobre o amor e que começa: 'Amor é fogo que arde sem se ver' e vai por aí fora dizendo, tentando dizer, o que é o amor e concluindo que não se sabe o que é o amor. O amor é um sentimento, evidentemente. Mas as pessoas podem dizer: 'Mas os sentimentos podem ser explicados por palavras.' Sim, mas há sempre qualquer coisa que escapa, e é isso exatamente aquilo que escapa, aquilo que é indizível, aquilo que pertence à categoria do inefável, aquilo que não se pode expressar por palavras, é aí, é aí que está o amor. O resto é a vivência de um cotidiano de duas pessoas, que vivem juntas, e que sabem que nem tudo são rosas, e que porque se querem, porque se amam, estão aí firmes e acabou.
[...] Gostar, amar, querer? Isso são coisas que duram, às vezes duram muito... mas não se esqueça da quadra que a gente tem lá na pátria: 'Dizem que a vida é breve,/mentira, que é bem comprida./Cabe nela amor eterno/e ainda sobeja vida." E ainda bem, pá! Porque se nós temos a noção de que podemos viver intensamente o amor, não só uma vez na vida, mas duas vezes ou três ou aquilo que tiver de ser, pois melhor, melhor." (Saramago)

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"Pois se eu leio hoje um livro e se esse livro influi em mim, como é que não há de influir a pessoa com quem eu vivo um ano, dois, três, quatro, cinco, dez anos? Mas nem eu me converto no livro nem me converto na outra pessoa. Agora, que nós nos interpenetramos a toda a hora com emoções, com sentimentos, com ideias, com opiniões e tudo o mais... claro. Cada um de nós é um mata-borrão, um mata-borrão que vai absorvendo aquilo que encontra." (Saramago)

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"Acho que o amor é algo que se dá e também me parece que há coisas que nem sequer se dão, que se vivem e que se vivem silenciosamente, porque dá-las e oferecê-las poderia ser uma insinuação de que se está pedindo reciprocidade. E cada pessoa tem sua própria forma de amar e de entender a vida... Não necessariamente tem que ser coincidente. Pode ser um casal com formas diferentes de entender a vida e de entender o amor e de entender a fidelidade. [...] Por acaso tentamos transformar os amigos em outra coisa? Nós aceitamos os amigos. Por que no casal tentamos transformar em outra coisa as pessoas que escolhemos?... Vão ser como são. Ou vamos ser como somos. Não podem me fazer diferente de quem sou e tampouco vou fazer o outro diferente." (Pilar)

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 "Quer mesmo que lhe diga algo sobre o romantismo? O romantismo é essa coisa que fez chorar milhões e milhões de mulheres à noite quando estão na cama com o travesseiro. Isso é o romantismo. O romantismo é essa coisa que as transformou em tuberculosas para serem pálidas. O romantismo é o que impediu viver o momento em função de um futuro hipotético. O romantismo é uma das maiores atrocidades que inventaram, imagino que os homens, para que as mulheres sofressem e padecessem. Detesto o romantismo." (Pilar)

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"Há uns que sim, que têm essa necessidade, outros não. Então, se a pergunta é legítima - por que é que as pessoas, muitas pessoas, têm uma enorme necessidade de crer e tal -, a outra pergunta também seria legítima - por que é que certas pessoas não têm nenhuma necessidade de crer." (Saramago)

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"Quem é que inventou o pecado? A partir do momento em que se inventa o pecado, o inventor passa a dispor de um instrumento de domínio sobre o outro, tremendo. Se tu metes na cabeça de uma pessoa a ideia de que pecou, podes fazer dessa pessoa aquilo que quiseres. E foi o que a Igreja fez,e já não faz tanto porque, coitados, já não têm nem metade do poder que tinham. É mais uma farsa, mais uma farsa trágica, que a Igreja representa todos os dias." (Saramago)

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"Não tenha pressa e não percas tempo." (Saramago)

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"Não, essa ideia de que toda a gente tem de ler é geralmente uma ideia de político, os políticos é que têm de vez em quando essas manifestações voluntaristas de 'Vou pôr toda a gente a ler.' Pois é, mas como eu já disse, quando nós temos dez milhões de habitantes e cinco milhões de analfabetos funcionais, digam-se lá aonde é que chegaram as campanhas para a leitura e tudo isso. Não foram longe. A pessoa lê se quer ler... querer impor a leitura, não. Criar condições para que a leitura seja possível e criar condições sobretudo na escola, sim. Se não se começa a aprender a gostar de ler na escola, nunca mais, ou muito dificilmente. E a escola- todos sabemos o que é que se passa -, a escola ensina mal, há professores que não gostam de ler, como é que podem transmitir aos seus alunos o amor pela leitura? Não podem." (Saramago)

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"Há professores que não deviam ser professores e depois há fenômenos recentes de indisciplina nas aulas, os incentivos para a distração... eu pertenço a uma geração em que praticamente a única distração que havia era o livro, não tínhamos outra... agora toda a parafernália que nos rodeia, que tem que ver com o audiovisual, distrai, ocupa. Quem é que vai pensar agora em ler um livro? Há garotos, adolescentes, que são bons leitores que me aparecem, mas são uma minoria, porque ler sempre foi coisa de uma minoria. Quando Luís de Camões publicou Os Lusíadas, no século XVI, a percentagem de analfabetos em Portugal era de noventa e seis ou noventa e sete por cento, então a pergunta que se pode fazer é: 'Então e para quem é que o Luís de Camões escreveu Os Lusíadas? Para os quatro por cento? Não. O Luís de Camões escreveu simplesmente Os Lusíadas. Os Lusíadas ficaram ali à espera que alguém os lesse... e depois foram lidos? É assim, meu caro." (Saramago)

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"Tem que desdramatizar, não é? Mas ainda nós, os privilegiados, temos que desdramatizar de manhã à noite. Porque há muita, mas muita tragédia no mundo, muito desespero para que estejamos ocupados com nossas pequenas coisas. Eu não estou, não posso estar e não posso me dar ao luxo de estar desesperada nem desesperançada nem triste. Porque tenho tudo. E mais, tenho até a força para lutar, que é o maior privilégio." (Pilar)

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"Os países privilegiados são países privilegiados e as pessoas que vivem nos países privilegiados não sabem o que têm e se suicidam de puro privilégio, não é? E não tenho pena dos suicidas do privilégio, porque toda a minha compaixão está esgotada com as pessoas que neste momento estão cruzando o oceano tentando cavar a vida com um bebê nos braços, mortas de frio, está certo?" (Pilar)

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