Pular para o conteúdo principal

Americanah (Chimamanda Ngozi Adichie)

Estudar literaturas africanas foi uma das minhas melhores descobertas na faculdade - no entanto, africanidade não significou negritude no meu curso de Letras. Além da maioria dos professores brancos, os autores mais estudados também o são. Sem tirar a qualidade de um Mia Couto ou um Agualusa, é preciso considerar que a grade curricular é também uma escolha ideológica. E se a proposta do governo é inserir o estudo de literaturas africanas de língua portuguesa na escola, isso não pode ocorrer apenas por meio de livros escritos por autores que nunca sofreram racismo.



Chimamanda N. Adichie sabe abordar as questões relativas à cor da pele e ao preconceito de modo instigante, polêmico, verdadeiro. A autora cria nuances nos personagens, que não se revelam totalmente bons ou maus - mais filhos do sistema do que donos das próprias escolhas.



A narrativa é longa, bastante detalhada. Se, por um lado, isso faz que as primeiras páginas do livro não encantem de cara, por outro traz um envolvimento maior com cada um dos personagens, que vai se fortalecendo ao longo do discurso.



Essa minha leitura faz parte de um desafio literário pessoal - de ler escritorAs de todos os cantos do mundo (decisão tomada após perceber que minha estante é machista e ocidentalizada). Em relação a alguns livros que já li para o projeto, pude perceber semelhanças temáticas nesta obra: a ideia de uma mulher que precisa sair de seu país de origem em busca de melhores oportunidades é também o tema de Precisamos de novos nomes, de NoViolet Bulawayo, e de A primeira luz da manhã, de Thrity Umrigar.



No entanto, mais do que uma história de migração, o livro é uma reunião de pensamentos sobre o que significa ser africana, ser negra, ser nigeriana, ser mulher. Uma leitura válida para todos que se atrevem a questionar os próprios preconceitos.



Trecho:

Nos Estados Unidos, o racismo existe, mas os racistas desapareceram. Os racistas pertencem ao passado. Os racistas são os brancos malvados de lábios finos que aparecem nos filmes sobre a era dos direitos civis. Esta é a questão: a maneira como o racismo se manifesta mudou, mas a linguagem, não. Então, se você nunca linchou ninguém, não pode ser chamado de racista. Se não for um monstro sugador de sangue, não pode ser chamado de racista. Alguém tem de poder dizer que racistas não são monstros. São pessoas com família que o amam, pessoas normais que pagam impostos.
 Alguém tem de ter a função de decidir quem é racista e quem não é. Ou talvez esteja na hora de esquecer a palavra “racista”. Encontrar uma nova. Como Síndrome do Distúrbio Racial. E podemos ter categorias diferentes para quem sofre dessa síndrome: leve, mediana e aguda.












Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se