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Como conversar com um fascista (Marcia Tiburi)

Um livrinho curto e poderoso. Apesar do título de quase autoajuda (em uma época em que qualquer auxílio para o diálogo é bem-vindo), Marcia Tiburi não se detém em soluções, mas, sim, em problematizar nossos tempos sombrios.

A obra trabalha muitas questões atuais brasileiras, sem deixar de considerar o contexto mundial em que estamos inseridos. A autora vai além da dicotomia política pura e simples, analisando como aspectos mais subjetivos têm tomado conta do debate contemporâneo - a negação do saber, dos fatos, das provas; a imposição de uma opinião única, da qual não se pode discordar; o endeusamento do capitalismo, como se este fosse um sistema econômico que não traz problemas em nenhum lugar do mundo; e por aí em diante.

Dos muitos aspectos abordados por Tiburi, o que mais me intrigou foi a questão do consumismo da linguagem. Usando o cenário político brasileiro como exemplo, a escritora vai revelando como, em tempos em que ninguém tem paciência para ler ou escrever, os pensamentos predominantes são de uma ignorância surpreendente. Compramos ideias e frases de efeito como quem escolhe a marca do miojo no mercado: nada que leve mais de 3 minutos para ser curtido, compartilhado e proclamado aos 4 ventos da navegação virtual. 

A linguagem pronta para consumo é uma ameaça à nossa existência enquanto seres políticos, pensantes, pesquisadores. Análises superficiais de fatos e informações (muitas vezes falsos) dão uma ideia do quanto nossa geração é mediocremente mal-informada, com a pretensão de entender de política sem saber nada de história, geopolítica, economia ou mesmo da básica interpretação de textos.

Uma das metáforas que mais me encantou na obra foi a retomada do poema de Pessoa - "Navegar é preciso, viver não é preciso" - no contexto da navegação virtual. Trocam-se afetos por brigas virtuais, conversas profundas por compartilhamentos de vídeos de 1 minuto, a vida em si pela realidade inventada das redes.

Grifei boa parte do livro, e sei que retomarei aos poucos todas essas anotações. É muita informação para uma obra pequena e, na contracorrente dos tempos modernos, pretendo fazer uma leitura calma, espaçada e retomar os trechos de que mais gosto quantas vezes forem necessárias para uma compreensão profunda desses ensaios.



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