Pular para o conteúdo principal

O vento assobiando nas gruas (Lídia Jorge)

Como diz Inês Pedrosa na contracapa, o título deste livro é agreste - talvez pouco convidativo a princípio, mas que deixa margem para um mistério a ser descoberto. De onde vem a poesia que ressoa em nós após a leitura do nome da obra de Lídia Jorge, escritora praticamente desconhecida no Brasil? Apesar de parecer um tanto hermética, a obra nos chama a desvendar o segredo de sua "poeticidade" desde o mais elementar princípio.

As primeiras páginas tampouco são fáceis ou esclarecedoras. Milene Leandro, protagonista (que, muitas vezes, se confunde com a voz do narrador), é alguém muito fora dos padrões socialmente estabelecidos. Ao início, suas atitudes parecem descabidas ou imaturas; contudo, essa impressão se mantém até sermos apresentados aos demais personagens da obra, hipócritas, manipuladores e, nem por isso, essencialmente ruins - apenas humanos.

A delicadeza do olhar sobre Milene (cujas atitudes só terão uma justificativa plausível ao final do enredo) instiga e comove o leitor. Entretanto, esta é uma obra grandiosa, que vai muito além da subjetividade lindamente construída; aos poucos, Lídia vai introduzindo em seu livro temas tão difíceis como o racismo, a doença, a morte, a fama, as aparências sociais.

Como disse a escritora em uma entrevista, Milene é uma personagem maior que o próprio livro. Sua maneira particular de lidar com as tragédias e os acontecimentos ao seu redor é tocante, inspiradora. Uma obra para aprendermos a escutar a voz dos mais fracos.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se