Pular para o conteúdo principal

A luta corporal (Ferreira Gullar)

A verdade é que pouco conheço de Ferreira Gullar, nomeado por alguns como nosso maior poeta vivo. Fora os poemas clássicos de livros didáticos (Uma parte de mim/ é todo mundo:/ outra parte é ninguém:/ fundo sem fundo; "O branco açúcar que adoçará meu café nesta manhã de Ipanema não foi produzido por mim nem surgiu dentro do açucareiro por milagre."), quase nada li do autor. Em parte, por causa de um infeliz texto seu, publicado na Folha, no qual o poeta afirma não haver a necessidade de rotular a literatura como branca ou negra - o que é fácil de defender quando se faz parte da minoria masculina e branca que publica no Brasil.




Disposta a me desfazer da birra pelo autor (afinal, quão poucos são os escritores que nos restariam tirados os preconceitos de todos os tipos), comprei a edição de toda a sua poesia, pela José Olympio. Começando pela ordem cronológica, me dediquei à leitura de "A luta corporal", livro de estreia datado de 1954. 

Há alguns poemas interessantes ao longo da obra, especialmente os de caráter metalinguístico. No entanto, em alguns poemas em prosa Ferreira se propõe a desconstruir a linguagem, criando páginas e páginas de textos absolutamente incompreensíveis. E vamos combinar que nos anos 50 brincar de vanguarda desconstrutora da linguagem tem mais cara de desculpa para não escrever algo que o valha do que o valor de uma ideia original. Para quem paga por um livro com quase um terço de leitura inválida, o sentimento é de frustração, apesar de alguns bons poemas.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se