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Cartas extraordinárias (Org. Shaun Usher)

Todos temos curiosidade pela correspondência alheia - seja pelo vazamento de arquivos confidenciais, a la WikiLeaks, ou por bisbilhotar mensagens via celular. Restringindo seu escopo preferencialmente às cartas manuscritas, ainda assim esta antologia consegue satisfazer a indiscrição de gregos e troianos.

A diversidade de temas e autores se, por um lado, pode tornar o livro bem desigual, por outro garante a identificação de todo e qualquer leitor. Há desde a carta de Jack, o estripador, relatando o quanto se deliciou com a carne de sua vítima, até uma receita de scones que a rainha da Inglaterra havia prometido ao presidente dos Estados Unidos. No meio dessa variedade, muitas cartas emocionam (como os bilhetes de suicídio), fazem rir, aquecem o coração. É difícil não sentir empatia, ainda que ela não seja contínua e nem se aplique a toda a seleção.

A edição, com muitos fac-símiles, ajuda a construir a ideia de invasão de privacidade que, no fundo, é o que anima o leitor de cartas. Em tempos de crise (ou desaparecimento?) do gênero, em nome de mensagens mais rápidas e curtas (e nem sempre tão significativas), a antologia é uma bela homenagem a uma prática de intimidade e confidencialidade quase extinta.



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