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Ressurreição (Machado de Assis)

Primeiro romance publicado por Machado, "Ressurreição" já traz um ou outro traço da fina ironia que caracterizaria o estilo do autor. Contudo, é uma obra de poucas surpresas, que se atém ao script do Romantismo; vale mais como documento histórico, de crítica genética, do que por algum valor intrínseco. Redundam nesta narrativa de estreia o tom hiperbólico, os saltos temporais mal explicados e os personagens circulares.

O aspecto mais atrativo da obra, para os grandes fãs de "Dom Casmurro", é descobrir a origem remota de Bentinho nos escritos machadianos. O personagem já vem todo esboçado nesta trama de principiante, assim como aspectos de uma futura Capitolina. O prazer da leitura é ir descobrindo esses traços que, posteriormente, culminariam em um dos maiores romances brasileiros/universais.

O protagonista, Félix, é um homem extremamente frágil, inseguro, corroído a todo momento pelo ciúme e facilmente enganado pelas falsas pistas de uma possível traição. De forma semelhante a Bentinho, chega a forjar uma viagem para escapar de seu próprio ciúme doentio. Ao final, o personagem prefere acreditar na verossimilhança da infidelidade do que na verdade comprovada. Já Lívia, tal como Capitu, possui um filho que a ampara. Curiosamente, por ser viúva, é a mãe do filho de outro homem - de onde pode ter se originado a semente da dúvida plantada depois por Bentinho. 

A "Ressurreição" do título é ambígua: ressurreição do ciúme de Félix? Ressurreição da capacidade de amar da viúva? No entanto, para nós, amantes de Machado, a leitura é ainda outra: ressurreição posterior de Félix e Lívia no casal Bentinho e Capitu.



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