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Vidas em fuga (filme de 1960)

Com um pouco de atenção, podemos observar que a influência dos clássicos greco-romanos se mantém até hoje. Desde os oradores de milênios atrás até as tecnologias mais avançadas de produção cinematográfica, é como se sempre, de alguma maneira, estivéssemos contando as mesmas histórias. Talvez porque nada de novo se cria sobre a Terra; talvez porque ainda não tenhamos apreendido os significados plenos dessas narrativas primordiais.

"Vidas em fuga" é um reconto da descida de Orfeu aos ínferos em busca da mulher amada - mas com o toque do teatro magistral de Tennessee Williams. Protagonizado por Marlon Brando (em uma atuação excepcional), o músico e garoto-problema em que se centra a narrativa é alguém sem lugar definido no mundo, não casualmente apelidado de "Pele de Cobra". Igualmente escorregadio e mutável, o personagem é uma fonte de surpresas a cada cena - não pelo exagero, mas sim pela circularidade e amplitude do seu caráter.

A mulher "resgatada" por este Orfeu jovial é uma dona de casa frustrada, com uma biografia trágica: teve o pai assassinado em um motim racista, foi abandonada pelo namorado quando estava grávida, perdeu o bebê, nunca mais teve filhos e se casou com um homem mau e doente. Com tantas desgraças na vida da personagem, não é de se admirar que ela se renda rapidamente ao charme do protagonista de Brando.

Como toda boa história inspirada nas tragédias gregas, este é um filme sem muitos alívios cômicos e com reviravoltas, drama e surpresas dolorosas. Ainda que o começo seja bastante arrastado, quando Brando começa a atuar ao lado da grande atriz italiana Anna Magnani, é difícil não se deixar enganchar pela história. O texto profundo de Tennessee torna o vínculo ainda mais profundo, que só é consolidado com a fotografia bem realizada e o enredo impactante.


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