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Lendo Tchekhov (Janet Malcolm)

Tchekhov foi meu amor literário à primeira vista, em uma época em que meu gosto pelos livros se reduzia a best-sellers e detetives duvidosos. Meu primeiro exemplar dos contos do autor (uma versão pocket resgatada de um ferro-velho, com uma tradução indireta), ainda que extremamente simplório, foi o suficiente para despertar não só o meu interesse por esse escritor em específico, mas por vários de seus conterrâneos e, consequentemente, por uma literatura mais profunda, que exige mais do leitor - e que dá muito mais em troca.

Dividido em duas partes, o livro começa com um relato da excelente jornalista Janet Malcolm sobre sua relação com a obra tchekhoviana. Em viagem pela Rússia, ela visitou não só os lugares significativos na vida do autor, mas também aqueles que teriam sido frequentados por seus personagens. Em meio a esse percurso, Malcolm vai nos dando um panorama da Rússia contemporânea - cheia de figuras que poderiam muito bem se encaixar em um enredo de Tchekhov.

A segunda parte, com 37 contos traduzidos diretamente do russo por Tatiana Belinky, traz alguns dos mais significativos dentre a sua produção - tais como "A dama do cachorrinho", "Gricha" e "Vanka". É um bom recorte da produção tchekhoviana, que é muito mais ampla e infinitamente potente.

Mestre da arte da concisão, a característica mais forte na produção do autor é criar enredos a partir de banalidades, trivialidades - são histórias em que "nada" acontece, mas que prendem o leitor e são cheias de camadas de significados. Afinal, apenas uma mão cheia para transformar o quase nada em quase tudo.



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