Pular para o conteúdo principal

Sonetos del amor oscuro/Diván del Tamarit (Federico García Lorca)

Federico García Lorca, assassinado pelas forças fascistas durante a Guerra Civil Espanhola, carrega o estigma de artista mártir. Como os jovens suicidas (lembremos de Sylvia Plath e David Foster Wallace), por vezes uma crítica menos especializada atribui o sucesso de sua obra mais às condições trágicas de sua morte do que ao seu valor literário.

Um dos meus dramaturgos mais queridos, com uma força de expressão teatral poucas vezes vista, Lorca também é o autor de versos carregados de símbolos, metáforas, alegorias. Ao contrário de suas peças, com uma linguagem mais direta (ainda que não menos carregadas de profundidade), seus poemas são quase herméticos, mesmo em livros curtos - caso dos "Sonetos del amor oscuro" e "Diván del Tamarit".

Com construções quase insólitas ("as imóveis caveiras dos cavalos", "a paisagem de osso"), a poética de Lorca é intrincada, quase labiríntica. Cada sentido desvelado encaminha a outro verso, por vezes mais enigmático que o anterior.

Talvez o uso de tantos símiles obscuros seja o recurso da linguagem cifrada necessária em uma época de ultraconservadorismo nascente; de outra forma, como metaforizar a carnalidade de seus versos, sua homossexualidade, sua transgressão? Espanhol que recorre a artifícios da poética árabe, em um discurso que contesta a própria formação (sangrenta) de seu país, Lorca é um poeta de coragem - e que exige a mesma dose de entrega de seu leitor.







Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se