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Mayombe (Pepetela)

Como minha primeira experiência de leitura de Pepetela, "Mayombe" foi uma estreia interessante. A linguagem do autor difere muito da de seus pares (no contexto da descolonização africana), como Agualusa ou Mia Couto: é um escritor mais direto, menos metafórico, intrinsecamente ligado aos fatos e à realidade que o cerca.

Esta opção linguística justifica-se também pelo contexto: publicado apenas 5 anos após a independência, o romance retrata as divergências políticas que levariam a uma guerra civil sangrenta e duradoura (que se prolonga até hoje na região retratada, a província de Cabinda).

O livro usa de recursos narrativos sabiamente escolhidos, que o levam muito além de um registro histórico factual. Uma das opções de Pepetela para mostrar o conflito entre os diferentes participantes do MPLA é a polifonia, com personagens diversos alternando-se na função de narrador.

Ademais, em alguns momentos a obra envereda pelo caminho do romance de tese, com discussões profundas sobre as opções políticas da época. O panorama do que aconteceria após a independência, por exemplo, é traçado com maestria pelo personagem João - quase como uma triste profecia do futuro do país.

É uma narrativa que retrata um momento e um lugar muito específicos, mas que ainda assim alcança uma certa universalidade. No panorama atual,em que repetimos tantas discussões anacrônicas, não deixa de ser uma bela (e melancólica) lição de história.


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