Pular para o conteúdo principal

O abutre (filme de 2014)

O jornalismo sensacionalista é muito mais do que apenas um veículo para a satisfação de nossas curiosidades mais mórbidas; é uma indústria, e, como tal, lida com funcionários, concorrência e uma ética muito própria no trabalho.

Este é o foco do filme "O abutre", estrelado por Jake Gyllenhaal: um retrato de como são geradas e popularizadas as notícias sobre crimes, acidentes e tragédias em geral. O grande mérito da obra em sua abordagem é centralizar a narrativa em um personagem que, apesar de causar uma certa simpatia (ou ao menos empatia) no espectador, é um sociopata.

Com o foco no anti-heroísmo, passa-se boa parte do filme na torcida pelo protagonista - ainda que seus atos sejam moralmente reprováveis. A ideia de trabalhar duro em algo que se ama (e ser bem pago por isso) parece abafar alguns traços muito mais graves de caráter do personagem principal. Só a profissão adotada por ele (filmar tragédias recém-ocorridas) já dá uma boa pista sobre os gostos e preferências deste complicado perfil humano.

Caprichando na atuação, Gyllenhaal consegue dirigir a atenção do espectador para si, auxiliado por uma boa fotografia e trilha sonora que acompanha os sentimentos do protagonista. No entanto, não é esta a grande problemática da obra; se os abutres existem, é porque há uma grande indústria que os motiva e paga seus salários. E se essa indústria existe, é para atender aos gostos do espectador - que se deleita tanto com uma manchete sangrenta quanto com esta produção cinematográfica.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se