Pular para o conteúdo principal

Vozes de Tchernóbil (Svetlana Aleksiévitch)

Os estudos da história cotidiana são recentes (datam dos anos 1960), mas seu campo de atuação vem se ampliando cada vez mais. Ainda assim, quando algum fenômeno abala o mundo, não são os relatos da vida privada que vemos ocupar o centro das informações. Até hoje, por mais avanços e questionamentos existam na historiografia recente, os donos do poder são os donos da história.

O livro de Svetlana Aleksiévitch me tocou profundamente. Ao estudar o acidente de Tchernóbil sob a voz da história oficial, ele me parecia apenas mais uma página de um livro didático qualquer - sem uma relevância comparável à de Hiroshima, por exemplo. Ao ser contraposta ao discurso de pessoas que viveram a catástrofe, tive um vislumbre de uma realidade trágica, assustadora e com consequências que reverberarão durante séculos.

Tchernóbil não foi um acidente devidamente controlado a tempo. A usina foi um erro desde o começo - feita de modo acelerado durante a Guerra Fria, seu colapso era uma questão de tempo... e, como um castelo de cartas, levou à queda do muro de Berlim apenas 3 anos mais tarde. Após sua explosão, o lugar foi "remendado" com chapas de concreto, e todos aqueles que atuaram nesse salvamento morreram de modo cruel e doloroso.

É apenas pelos relatos de quem viveu ou ainda vive Tchernóbil que podemos ter uma noção mais clara do real significado histórico desse episódio, um dos mais importantes e perigosos do século XX. A seleção de depoimentos feita pela Nobel bielorrussa (que demorou mais de 20 anos para publicá-los) é o atestado de um trabalho extremamente competente e acurado.

Ainda que o livro componha-se basicamente de transcrições, vemos a mão hábil da autora nas perguntas implícitas, nos belos títulos e na organização dos blocos de texto da obra. Somos confrontados com muitas e diversas vozes, e saímos da leitura com uma enorme sensação de impotência - afinal, é muito difícil eleger culpados. Vários lados da verdade são apresentados, e em todos eles podemos perceber vítimas de um contexto inesperado e trágico.

Por fim, um dos pontos mais interessantes dos relatos é perceber, em diversas vozes, a reclamação de que não há uma literatura própria para Tchernóbil. Mesmo os cidadãos mais lidos e estudados não souberam a que fonte recorrer diante de um acidente de proporções tão amplas, para poder entender o que havia acontecido. A obra de Svetlana veio justamente cobrir essa falta.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se