Pular para o conteúdo principal

O Sol é para todos (Harper Lee) + filme de 1962

Um livro completo: não consigo pensar em uma definição que se ajuste melhor ao incrível "O Sol é para todos", da estadunidense Harper Lee. Aliás, tão completo que esta foi sua única publicação durante a vida (ao menos, única inquestionável - há uma obra quase póstuma que entrou no mercado por puro interesse editorial, o que já é outra história).

A narradora do romance, Scout, é uma garotinha totalmente irreverente e que tem a sorte de haver sido educada em uma casa de pensamento mais aberto; sem vontade nenhuma de tornar-se uma dama, nossa narradora desafia os rígidos códigos de conduta da sociedade do sul dos Estados Unidos dos anos 30. Ela não usa vestidos, briga com meninos no intervalo escolar e chega a salvar a vida do pai de valentões, por meio de um discurso verossímil, inocente e deliciosamente questionador.

Se a narrativa gira em torno de Scout, isso não diminui o papel dos demais personagens, excelentemente construídos: Atticus (o pai), ainda que falho, é quase o exemplo do super-homem cotidiano - aquele que, sem fama nem fortuna, ainda acredita ser seu dever sair na defesa dos humilhados e ofendidos. Jem (o irmão) é um dos melhores retratos da formação do caráter na adolescência. E assim a lista prossegue: a emprega Calpúrnia, o negro acusado injustamente (Tom Robinson), a sociedade conservadora de Maycomb... tudo é descrito sem excesso de detalhes, mas na medida certa para tornar o enredo e os personagens cativantes.

O tema principal da obra é a injustiça, principalmente a racial; entretanto, o livro passeia por diversos assuntos, lançando provocações aqui e acolá. A educação pública, os métodos de ensino, a pretensa caridade dos chás de senhoras endinheiradas, o lobo dentro do homem: esses aspectos são indicados por uma narradora de apenas 6 anos, e sem perder o tom próprio da infância questionadora.

Personagens marcantes, amplo espectro de temas, narração envolvente: uma obra completa, sem mais. E sua beleza é tanta que foi refletida com maestria no cinema: o filme de 1962 é uma maravilhosa adaptação, que consegue ser muito fiel à obra original, sem deixar de convencer enquanto sétima arte. Atuações excelentes em um dos melhores filmes de julgamento que você verá - um complemento ótimo a uma leitura incrível. 



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se