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Cora Coralina, todas as vidas (filme de 2017)

Não sou uma leitora habitual de Cora Coralina - e muito desse meu desconhecimento talvez possa ser atribuído ao modo como a figura da poeta foi construída entre nós. Com o meu olhar reduzido ao discurso do livro didático, tinha a concepção de que a sua poética era a de uma humilde dona de casa, vendedora de doces caseiros - versos feitos com açúcar e com afeto.

O documentário "Cora Coralina - Todas as vidas" traz um contradiscurso que me pareceu fundamental para entender a escritora (ou, ao menos, para nos aproximar dela). Sempre à frente de seu tempo, questionando regras e desafiando padrões, Cora foge muito do estereótipo a que foi enclausurada.

Se só deu-se a conhecer na velhice como autora, muito se deveu a uma vida agitada, sofrida, na qual sempre houve muito trabalho e pouco descanso. No entanto, a poeta foi uma assídua contribuinte em jornais diversos - sem corresponder, portanto, à imagem de escritora iniciante, que nunca havia publicado nada em vida até "ser descoberta". Se por um lado houve acaso, por outro houve luta. Afinal, Cora foi alguém sempre envolvida com o meio editorial - lendo, vendendo livros, escrevendo e publicando.




Outra ideia bastante difundida sobre a suposta docilidade/passividade da escritora é a sua confeitaria. Ao contrário do que é senso comum, entretanto, a goiana foi uma empreendedora, a primeira da família a transformar as receitas de gerações em fonte de renda. 

Atrevida, questionadora, à frente de seu tempo: essa é a visão sobre a poeta que o documentário constrói/resgata, e que o torna tão necessário.



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