Pular para o conteúdo principal

Expurgo - Sofi Oksanen

"Expurgo" é um livro que dificilmente entraria na minha lista habitual de leituras - e, se passou a fazer parte dela, foi em função do meu projeto "Escritoras do Mundo". Para dar voz a uma escritora finlandesa, apostei na obra (incentivada também por estimulantes blurbs e um projeto gráfico com capa intrigante). 

Inicialmente, meu contato com a narrativa foi desestimulante. O início de "Expurgo" é lento, com citações pouco compreensíveis e muitas descrições, por vezes de viés escatológico. Se insisti na obra, foi em função do meu projeto - que, mais uma vez, mostrou ser uma ótima fonte para a descoberta de vozes literárias desconhecidas.

A aparência de estranhamento da narrativa de Oksanen vai sendo mais compreensível ao longo da obra. É preciso um pouco de paciência para enfrentar as descrições iniciais, que vão levando, aos poucos, o leitor à frente de um quebra-cabeça magistral. A simulada desconexão entre partes da obra e o estilo de narrar são peças importantes na resolução dos mistérios que compõem o fluxo da narrativa.

Ademais do aspecto de thriller literário, extremamente bem-feito, o livro é uma excelente porta de entrada para entender um pouco mais da história dos países nórdicos, principalmente os que compuseram a URSS (como a Estônia). 

Diferente de tudo o que já havia lido, o romance se centra na relação de amor e ódio de duas irmãs durante o regime comunista, com um recorte histórico que se estende até o tempo atual. O estilo da autora, voltado para um escatológico quase minimalista (na sua fixação por moscas e pequenos insetos) dá o tom de uma trama incômoda, que veio para provocar. 


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se