Pular para o conteúdo principal

O fabuloso destino de Amélie Poulain (filme de 2001)

Assisti a Amélie Poulain pela primeira vez quando tinha quase a idade da protagonista - e, ainda que houvesse amado a obra, o passar dos anos me fez desconfiar do quanto ela sobreviveria ao tempo. De todos os múltiplos elementos que compõem o longa, do que mais me lembrava era do aspecto de comédia romântica. Assim, passou a me incomodar a possibilidade de que, reassistida, a produção não sobrevivesse ao meu juízo crítico atual - mais exigente, chato, menos propenso à imaginação.

Para a minha sorte, contudo, Amélie Poulain não só resistiu, mas cresceu como filme. Ao revê-lo cerca de dez anos depois, pude perceber muito mais de sua estética e do quanto ela foi inovadora e criou tendência no cinema do século XXI. Para além da forma, a narrativa também é ousada quanto a seu conteúdo; ainda que recorra a traços da comédia romântica, conta com uma protagonista forte e decidida - mesmo que extremamente tímida.

O narrador é uma figura bastante interessante no desvelo da trama. Com efeitos de zoom in e zoom out, aproxima e distancia fatos, associações e objetos durante o seu contar. Assim, a narrativa segue um ritmo muito peculiar: constantemente acelerado, mas sem ignorar a importância do foco no detalhe.

A presença onisciente e onipotente da voz narrativa no conduzir da trama faz que personagens aparentemente banais - a hipocondríaca, o maníaco, o pai absolutamente "normal" - tornem-se instigantes para o espectador. A própria Amélie, despida do poder fabulativo, seria de pouco interesse. Entretanto, inserida em seu imaginativo mundo, é literalmente fabulosa.





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se