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Roda-gigante (filme de 2017)

A conversa entre a linguagem teatral e a cinematográfica por vezes traz resultados surpreendentes. É o que vemos, por exemplo, em "Dogville", produção do dinamarquês Lars Von Trier que abre mão de cenários e paisagens para colocar seus atores em um palco nu, riscado a giz, sobre o qual toda a interpretação e capacidade de estimular a imaginação do espectador ficam a cargo dos atores. Não há subterfúgios, cortes ou mudanças de cena capazes de manter a verossimilhança caso a atuação não se sustente. De igual forma, no recente "Roda-gigante", de Woody Allen, tudo depende da escolha de casting.

Não lidamos, nesta obra, com a ausência de elementos; como todo clássico filme do diretor, temos boas tomadas, cenários interessantes, uma fotografia lindíssima e a condução exímia do narrador da história. Ainda assim, por dialogar muito com o gênero teatral - inclusive com a citação de obras e autores diversos -, cria-se uma espécie de interseção entre os discursos do teatro e do cinema.

Assim como um ator defronte de seu público, do qual não tem escape, boa parte do sucesso da obra se deve às atuações excepcionais de seu elenco. Kate Winslet e Justin Timberlake, especialmente, estão em alguns de seus melhores papéis. Principalmente no caso da atriz, com um histórico mais amplo nas grandes telas, é surpreendente observar a sua versatilidade e profundidade enquanto profissional. O seu discurso não só convence como emociona, causa choque, angústia, identificação.

Um dos mais bem-acabados longas de Allen, o filme é um presente tanto para os fãs da sétima arte quanto da segunda. Enfim, convence e emociona a todos aqueles que apreciam uma boa história sendo bem interpretada.



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