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Só garotos (Patti Smith)

O impacto de "Só garotos", obra da multifacetada artista Patti Smith, foi menor para mim do que o de meu livro de estreia na sua escrita, "Devoção". Talvez por contar exclusivamente com elementos autobiográficos, o romance por vezes patina em algumas questões como o limite da verossimilhança, a romantização de episódios históricos, o apagamento do drama em alguns contextos. O que, em uma obra de ficção, pode ajudar a dar o tom da narrativa nem sempre funciona tão bem quando o gênero é tão pessoal e intrincado.

Contudo, ainda que falho, é um excelente livro. Nada melhor para defini-lo do que a apresentação na artista na cerimônia do Nobel, em que interrompeu a canção para desculpar-se pelo excesso de emoção. Sendo a narrativa de uma vida, é de se esperar que a carga emotiva interfira no modo de construir o enredo. 

Para quem se interessa pelo panorama artístico dos anos 60/70, a obra é um prato cheio de referências - de Salvador Dalí a Nina Simone, são muitos os contatos que tornaram a vida de Smith uma verdadeira mescla de correntes diversas. 

O mote central da obra - o relacionamento com o fotógrafo Mapplethorpe - é também o seu ponto forte. Descrito com extrema sensibilidade e delicadeza, é uma bela homenagem à vida e ao artista. Réquiem místico e exuberante.





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