Pular para o conteúdo principal

O deserto dos tártaros (Dino Buzzati)

"O deserto dos tártaros" é uma obra sobre a vida que poderia ter sido e não foi. Espécie de romance de formação, ainda que acompanhemos seu protagonista apenas na fase adulta, o livro trata das expectativas continuamente frustradas pela maturidade. Não há, contudo, ironia ou amargura nesse relato - o que predomina é o tom de uma melancolia resignada, de uma esperança inútil.

O tenente Drogo, personagem em torno da qual se constrói o enredo, é convocado para servir em um forte na região fronteiriça da Itália. O cenário de montanhas contornadas por um deserto diz muito sobre os altos sonhos de Drogo, que terminam ao rés-do-chão. Anos se passam enquanto o protagonista, vivenciando um cotidiano burocrático e sem sentido, espera por uma guerra, o grande momento no qual irá brilhar.

A inocência de Drogo somada ao desfecho brutal da obra me lembrou muito o nosso "A hora da estrela", de Clarice. A grande diferença entre Drogo e Macabéa é o peso do tempo, que faz o protagonista de "O deserto dos tártaros" se encurvar à espera da sua ínfima glória. E, assim como em Lispector, a linguagem de Dino Buzzati é absolutamente poética, transformando a banalidade da existência de seu personagem em um ato magistral de escrita.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se