Pular para o conteúdo principal

Os possessos (Elif Batuman)

Elif Batuman é um nome que reapareceu com força no mercado brasileiro, com o lançamento de A idiota. Assim como em sua obra mais recente, Os possessos deixa bem claro, já pelo título, o paralelo com a literatura russa. E, curiosamente, Batuman é uma escritora estadunidense com ascendência turca – o que dá à sua escrita uma visão muito particular de mundo. 

Filha do Oriente e do Ocidente, a autora traz uma perspectiva singular para entender a história da Rússia, país com raízes espalhadas por dois continentes tão diversos quanto a Europa e a Ásia. O livro traz muitas reflexões instigantes; entre as que ainda reverberam em mim, estão estas: 

- o porquê de os escritos de Dostoiévski e Tolstói, bem como de outros seus contemporâneos, gerarem uma identificação tão forte com seus leitores;

- a repetição de motivos, alegorias e estratégias similares e o consequente empobrecimento da literatura contemporânea;

- como os nomes dos personagens podem ser: um reflexo do quanto o escritor deseja construir caracteres únicos e individuais x o reflexo do escritor que deseja espelhar a vida real, sem se abster de repetir nomes para personagens diferentes;

- como as intertextualidades com obras maiores que a própria pode, na verdade, ser um novo paradigma da construção do romance atual.

Apesar da vasta lista de apontamentos literários perspicazes, aos poucos fui me incomodando com a narradora/autora da obra. Há um ar privilegiado de quem só circula pelas academias que me parece distante de diversas formas potentes de literatura (aquelas que não adentram a torre de marfim das universidades). Além disso, um certo preconceito pela produção cultural de outros povos, como os uzbeques, é mal disfarçado. No fim, a arrogância que tanto é criticada pela escritora se apresenta de forma isomórfica em sua própria obra.




Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

1984 (George Orwell)

Vulgarizado após a criação dos reality shows , o livro de George Orwell se tornou um daqueles clássicos que todos comentam e que ninguém leu. Qualquer um quer falar com propriedade do Grande Irmão, da sociedade vigiada, mas todos esses clichês não chegam perto do clima opressor que o autor impõe à sua narrativa. 1984 é uma obra provocativa e premonitória. Ainda que as ditaduras não tenham obtido o poder previsto pelo escritor (pois se travestiram de democracia), os cenários descritos são um retrato mordaz dos nossos tempos modernos. Um exemplo: para entreter a grande massa (os "proles"), o governo do Grande Irmão tem em seu poder máquinas que criam letras de músicas de amor aleatoriamente. Essas canções, desprovidas de essência humana, são entoadas pelo povo e logo se tornam o ritmo do momento. E assim se revela mais um dos inúmeros meios de controlar uma população que não pensa, não critica e não questiona. Quando foi escrito, 1984 era uma obra futurística. Lido h

Cenas de Abril (Ana Cristina Cesar)

O livro de estreia de Ana Cristina Cesar é inovador desde a capa, em que aparece a figura ambígua de um útero. Fragmentada e polissêmica é também a poética, em que pululam versos telegráficos, por vezes de compreensão dificílima para o leitor. Não se trata de uma tentativa de hermetismo, pelo contrário; o que causa estranhamento nos poemas é sua simplicidade cortante, com associações inusitadas e bastante diretas. Além disso, os assuntos não se mantêm ao longo dos textos; Ana Cristina salta com naturalidade entre temas complexos e diversos. Apesar de curto, é uma livro de estreia potente, com muitas possibilidades de interpretação - antecipando a grande e breve obra deixada pela autora.

As três Marias (Rachel de Queiroz)

Protagonistas femininas para um romance escrito por uma mulher - uma mudança de perspectiva tão necessária em meio a esses nossos cânones machistas. Rachel de Queiroz é escritora de mão cheia, e não se deixa vender ao estereótipo de moça que escreve para relatar seus conflitos pessoais. Sua obra é social, intensa, mas sem diminuir o interesse psicológico de seus personagens. Trechos: "A gente pensa que a infância ignora os dramas da vida. E esquece que esses dramas não escolhem oportunidade nem observam discrição, exibem-se, nus e pavorosos, aos olhos dos adultos e aos dos infantes, indiferentemente." "-Conheça o teu lugar, minha filha.. (Isto é: 'Pense em quem é você, na mãe que lhe teve, mulher sem dono e sem lei, que lhe largou à toa, criada por caridade. A vida se mostra, à sua frente, bela, sedutora, iluminada. Mas, para você, é apenas uma vitrina: não estenda a mão, que bate no vidro; e não despedace o vidro; você sairá sangrando... Contente-se